“Mais que o poeta (ama) a rima e a metonímia” é um dos versos da canção “Meu mundo gira em torno de você”, do Kid Abelha. Finalmente a ouço, mais de uma década depois de conhecer sua letra. Sim, a música decepciona, mas em breve a esquecerei e o verso continuará a pipocar na mente toda vez que eu pensar em metonímia – essa figura de linguagem que, entre outras coisas, define quando substituímos o continente por seu conteúdo ou uma parte pelo todo.

Uma parte, um detalhe. Não sou poeta, mas amo uma metonímia.

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O detalhe poderia ser a primeira impressão: um pôster de Audrey Tautou prendendo o cabelo, presente em diversas estações do metrô parisiense na primavera de 2012; a capa de um livro empilhado numa estante da livraria, flores roxas suspensas por um discreto porta-notas. O filme, dirigido pelos irmãos David e Stéphane Foenkinos, no Brasil ganhou o título A delicadeza do amor; o romance, escrito apenas por David, foi lançado pela editora Rocco como A delicadeza.

Li pouco menos da metade do livro ainda na livraria, em três ocasiões diferentes. O livro flui com elegância e é fininho, mas o desejo maior era degustá-lo e sorrir até criar rugas enquanto o fazia, não era devorar. Quando cheguei à página 69, numa livraria em Recife, lamentei que a grana estivesse tão curta ao ponto de não poder levar um exemplar para casa.

Abriu, finalmente, a porta do apartamento e achou que a sala era pequena demais em relação à sua vontade de viver.

 

A frase resumia o que eu sentia cada vez que abria o romance em uma nova livraria.

 

 

Ainda em Recife, vi o filme. Acho que foi a primeira vez que não li um livro antes do filme ou vice-versa: eu li parte do romance, vi o filme e depois continuei a leitura. Minto: quando finalmente adquiri o livro, voltei ao começo só para ter 69 páginas a mais para ler.

Creio que, assim como Scott Pilgrim contra o mundo, a adaptação cinematográfica e a obra original se complementam. Tudo de um está também no outro, mesmo que em contextos diferentes, mesmo que implicitamente. O filme manteve as cenas antológicas do livro – como a de quando Nathalie conhece seu marido, a da brutal morte súbita deste, a de um beijo esquisito e inesperado, a do encontro dela com seu chefe, que não entende como uma mulher tão bonita possa ser tão boa no trabalho (e querer ficar sozinha!) –, mas aproveita, sempre que possível, para viajar em algumas sequências visuais. No romance, por sua vez, David Foenkinos aproveita para cochichar algumas de suas digressões em notas de rodapé, para nos informar sobre o que se passa na cabeça de meros figurantes e para compartilhar conosco definições de dicionário, a discografia de John Lennon se ele não tivesse morrido em 1980, a receita de um prato citado no capítulo anterior, os signos astrais dos integrantes da equipe de Nathalie e outras curiosidades que temperam a narrativa.

Mas já chega de falar do todo. Vamos ao detalhe.

 

 

Há quase dois anos, escrevi uma coluna a respeito de quando confundimos livros. Recentemente, percebi que havia confundido A delicadeza com A delicadeza do amor. Mais especificamente a cena acima (pouco após Nathalie confessar a uma amiga o quanto ainda se sente presa ao passado) com o trecho a seguir, em que uma colega de trabalho a leva para um bar e tenta ajudá-la a seguir em frente:

 

Chloé assumiu a condução da conversa, somando, umas após outras, várias histórias positivas sobre Nathalie, de modo a valorizá-la. Pelo que dizia, tratava-se de uma mulher moderna, brilhante, engraçada, culta, dinâmica, clara, generosa e absoluta. Tudo isso em menos de cinco minutos, embora o homem só tivesse uma pergunta na cabeça: o que falta nela? Durante cada um dos voos líricos de Chloé, Nathalie procurava dar sorrisos críveis, suavizando seus zigomas, e, por ocasião das raras risadas, parecia natural. A energia utilizada para isso, porém, a deixara exausta. Por que lutar para parecer alguma coisa? Por que tanto esforço para se mostrar agradável e sociável? Além disso, qual seria o passo seguinte? Outro encontro? A necessidade de entrar cada vez mais na intimidade? Subitamente, tudo aquilo que parecia simples e despretensioso lhe pareceu um dia negro. Por trás daquela conversa anódina, ela enxergou a engrenagem monstruosa de uma vida a dois.

Pediu desculpas e se levantou para ir ao banheiro. Observou-se durante um bom tempo no espelho. Cada detalhe de seu rosto. Molhou as faces. Achava-se bonita? Tinha, de fato, alguma opinião sobre si mesma? Sobre a sua feminilidade? Precisava voltar. Já havia vários minutos que ela estava ali, imóvel na sua própria contemplação, movendo-se em suas reflexões. De volta à mesa, pegou o sobretudo. Inventou alguma coisa, mas nem se preocupou em parecer verdadeira. Chloé disse alguma coisa que ela não entendeu direito. Já estava na rua. Mais tarde, ao ir para a cama, o homem se perguntaria se tinha agido mal.

 

Eu podia ver claramente a cena: Nathalie dançando loucamente, até que um rapaz se aproxima e, antes dele proferir a cantada que engatilhara, ela sai de perto, pega o sobretudo que sua amiga guardava e vai embora.

Esse é o detalhe. E, ao que tudo indica, ele sequer existe em outro local além da minha mente.

Mas isso não importa – creio que seja perceptível como as cenas se complementam. Em ambas, é patente a preocupação das pessoas próximas a Nathalie por ela continuar sozinha. Como se encontrar um substituto para o marido morto fizesse tudo melhorar automaticamente. O problema é que Nathalie está bem sozinha. Digo, ela não está bem, está deprimida etc. (o amor da sua vida morreu, plmdds), mas ela está bem sozinha. Sim, ela está mais focada no trabalho – aliás, parece viver para isso –, mas veja só como ela dança.

Dizem por aí que solidão mata mais que obesidade. Mesmo sabendo disso, sigo procurando esses momentos em que, mesmo acompanhado, estou sozinho e estou bem – como se lesse um bom livro no meio do happy hour da turma. Numa festa, num passeio, num almoço, numa ida ao cinema, seja com amigos, seja com semi-conhecidos, me pergunto: como Audrey Tautou dançaria (mesmo que metaforicamente) aqui?

Alguns querem moves like Jagger.  Eu fico satisfeito com moves like Tautou.

* * *

Três músicas para dançar sozinho1:

* Dancing on my own, Robyn
* Dancing with myself, Billy Idol
* Elle m’a dit, Mika

  1. Esta coluna é em homenagem ao meu amigo Eric, que há muitos meses me inspirou com uma crônica sua sobre dançar na frente do espelho e sobre um romance do Murakami que ainda não li, Dance Dance Dance. Ele citava as três músicas abaixo. A bendita crônica (intitulada Danse Danse Danse) foi originalmente escrita para um projeto esquisito do meu blog pessoal, que não deu certo. O pseudônimo dele era Dante.