Bueno.

Terminei a leitura do meu primeiro romance do Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana. E posso dizer que, embora não seja dos melhores que li, as muitas horas de leitura até que valeram a pena.

Para falar sobre esse livro, não quero começar fazendo um resuminho do enredo. Quero que vocês entrem nele, ao menos aqui, às escuras. E quero isso porque isso é importante para esse livro. Por ora, digo que ele foi publicado pela Record, em 2005, que a tradutora é a Eliana Aguiar e que ele tem 456 páginas. E também que a narrativa divide-se em três grandes partes: “O Acidente”, “Uma memória de Papel” e “OI NOΣTOI”. Vamos a elas.

O Acidente

Então compramos o livro e, faceiramente, começamos a leitura:

“E o senhor, como se chama?”

“Espere, está na ponta da língua.”

Tudo começou assim.

Era como se acordasse de um longo sono…

Os dois discursos diretos com os quais a narrativa começa já nos dão o tom de toda a primeira parte do livro: o protagonista não sabe seu nome, ou melhor, não o sabia no momento em que a história que será narrada começou. Mais adiante, descobriremos que ele não sabe nada sobre sua vida: não reconhece a si próprio, a sua esposa, filhos, netos; não recorda nada sobre seus pais e seus demais familiares; não sabe onde mora, no que trabalha e, ao menos, se trabalha. Em resumo, não se lembra de nada relacionado a si próprio, embora saiba quem foi Napoleão, que houve duas grandes guerras mundiais, que o branco chama-se branco – todas as coisas que o mundo inteiro sabe, na medida do possível. O interessante aqui é que ele, o protagonista e narrador da história, e nós, os leitores, estamos na mesma situação, não sabemos nada sobre ele mas sabemos quem foi Napoleão, que houve duas grandes guerras mundiais, que o branco chama-se branco… E, juntos, nessa primeira parte, descobriremos que ele está num hospital, que sofreu um acidente cardiovascular (embora o livro não explicite isso, dá pra supor durante a leitura), que por isso perdeu sua memória autobiográfica – aquela responsável pelas coisas que vivemos – mas que manteve intacta sua memória semântica, ou seja, ele não esqueceu de como se fala, de como se dirige, se escova os dentes ou de como se faz amor, embora não consiga lembrar de qual é a sensação que o sexo provoca nele; descobrimos que sua esposa se chama Paola, que tem filhos, netos, prováveis amantes e, dentre outras coisas, que é vendedor de livros raros. Vamos, juntos com ele, descobrindo, através dos outros, todas as coisas sobre sua vida, e vamos descobrindo, também juntos, que ele não sabe como se sentiu e como se sentia frente a todo esse mundo e a essa vida agora nova que se nos abrem – mas sabemos como se sente, um outro de quem nada se sabe. Já em casa, num determinado momento, sua esposa propõe que Yambo (a essa altura, já sabemos que seu nome é Giambattista Bodoni e que seu apelido é Yambo) viaje para Solara – uma cidadezinha na qual há uma antiga casa da família em que ele viveu, quando criança, durante a segunda guerra mundial, momentos decisivos de sua vida –, pois ela acreditava que lá, reencontrando-se com as coisas e os lugares do seu passado, ele pudesse recobrar sua memória. E, entrando em Solara, entramos também na segunda parte da narrativa.

Uma memória de Papel

Chegando à casa da família, em que vive uma empregada já com seus 70 anos e que viveu sua infância junto com Yambo, que tem quase 60, nosso herói começa suas investigações sobre seu passado. Investigando junto com ele, descobrimos que Yambo foi um grande leitor na sua infância e pré-adolescência. Lia revistas em quadrinhos, diferentes formas de narrativa e gostava também de música, principalmente clássica. E aqui a narrativa fica chata, deve-se confessar. Ao encontrar seus livros e revistas da infância, Yambo acredita que, (re)fazendo essas leituras, pode se (re)descobrir. E a narrativa entra em longas descrições de histórias em quadrinhos e de livros dos anos 20, 30 e 40, principalmente, de músicas, e aí o troço fica maçante pacas – embora existam momentos em que pequenas histórias sejam contadas e apareçam muitas ilustrações e reproduções de capas de livros, de HQs, de discos, compilações de músicas, cartazes, panfletos e etc (tá, o que cansa um pouco também). Mas, a essa altura, nós – agora o nós somos só nós leitores – já estamos querendo saber se isso vai adiantar de alguma coisa, se Yambo vai recobrar sua memória e parar de nos cansar com essa catalogação de tudo aquilo que leu e ouviu durante os tempos em Solara – não esqueçamos de que ele é vendedor de livros raros, para quem a catalogação é uma prática fundamental. Daí que a coisa toda parece que não adiantou de nada, e, ao que tudo indica, nós – leitores e ele – não avançamos muito nas suas memórias.

Em qualquer caso, até o momento Solara não me restituíra algo que fosse realmente e somente meu. Tudo o que descobri foi o que lera, mas assim como tantos outros leram.

Até que, quando já está decidido a voltar para Milão, onde morava com sua esposa, descobre um livro: o in-folio de 1623 das obras de Shakespeare, talvez um dos livros mais raros e desejados e procurados.

Com esse in-fólio estou vivendo um romance mais excitante que todos os mistérios vividos entre os muros de Solara, durante quase três meses de alta pressão [Yambo ficou cerca de três meses em Solara e tinha pressão alta]. A emoção me embaralha as idéias, sobem a meu rosto lufadas de calor.

É seguramente o grande golpe da minha vida.

Então que ele acha o in-fólio de 1623 do Shakespeare, e parece que vai ter uma síncope. E a segunda parte acaba.

OI NOΣTOI

(Grego. Alguma coisa do tipo: retorno/retornam para casa)

Sim, algo aconteceu com nosso herói. Aqui, estamos dentro da cabeça de Yambo – mas não esperem técnicas narrativas extremamente apuradas para a representação disso. As suas memórias começam a voltar, completamente embaralhadas, e as vamos percebendo, só pra variar, junto com Yambo, que tenta organizá-las, dar a elas algumas formas. Yambo, novamente, não sabe onde está e nem como está, mas imagina-se num hospital, em coma, ou morto, no limbo. Essa é uma das coisas que fica suspensa até o final da narrativa, mas muitas outras começam a fazer sentido, até o momento em que, nas suas lembranças, a possibilidade de ver o rosto daquela que fora seu primeiro amor embaralha tudo novamente, e, numa confusão entre ficção e realidade somos conduzidos junto com Yambo ao final da história, que eu não vou contar.

É essa a história que Eco nos conta, um homem que perdeu sua memória e tenta recuperá-la. A narrativa em primeira pessoa faz com que nos colemos a Yambo e sigamos, junto com ele, na busca por suas lembranças – o que seria bem difícil de ser feito em uma narrativa em terceira pessoa. Escutar a história de um narrador-personagem, que conta a sua história de como procurou rememorar todas as suas lembranças que haviam sido perdidas é a grande sacada da narrativa de Eco. E é a grande sacada pelo motivo no qual insisti durante meu texto: fazemos isso juntos. Exceto a segunda parte do livro, cansativa por seu aspecto algo catalográfico – explicável estruturalmente pelo fato de a história ser contada por um vendedor de livros raros –, a história nos prende. É verdade que mais pela curiosidade em saber se Yambo se (re)descobre que por qualquer outro motivo – a sua busca pelo rosto do seu primeiro amor parece ser um outro recurso utilizado para se prender a atenção do leitor, e, embora se confunda em alguns momentos com o objetivo principal da busca de Yambo, pode ser caracterizada como algo que desempenha o papel de fortalecer o seu ímpeto pela busca. Podemos dizer também que o livro não deixa de tematizar uma velha questão da teoria literária: ficção vs realidade. Na primeira parte, Yambo relembra trechos de diversos textos literários, embora não saiba bem o porquê disso acontecer. Na segunda parte, é através da ficção – seja ela a música, a literatura ou as histórias em quadrinho – que Yambo procura (re)descobrir quem realmente foi. Porém, nenhuma das histórias que leu o ajudam, mas sim um livro visto como objeto, que o ajuda não pelo que conta, mas sim por sua raridade – Yambo é, no fundo, um bibliófilo. Ao final da terceira parte, temos por fim a total confusão entre ficção e realidade, quando da interação entre personagens históricas – pessoas reais – e personagens ficcionais, e da confusão entre essas duas, digamos, categorias: será que Lila, seu primeiro amor, é real? Será que ela é uma personagem de ficção? Talvez uma pessoa real ficcionalizada? Não sabemos. E não acredito que precisemos dar um veredicto sobre isso.

Bueno, dos caminhos possíveis para a abordagem do livro, achei que esse seria bom para provocar a sua leitura. E é isso.

Até a próxima!

Saiba mais sobre essa e outras obras no site do Grupo Editorial Record

Sobre o autor: Leandro Cardoso é o Leandrão no Fórum Meia Palavra. É formado em Letras – Bacharelado em Estudos da Tradução, Português e Latim – pela UFPR e mestrando em Literatura pela mesma instituição.

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