Escrever sobre um livro de contos não é nada fácil, sempre fica faltando alguma coisa, fica um tanto exaustivo comentar um por um, mas analisá-los panoramicamente deixa lacunas que atormentam aquele que escreve sobre a obra.
Feita essa pequena mea culpa, é preciso dizer que 28 contos de John Cheever, selecionados por Mario Sergio Conti, é um ótimo livro, que passará a figurar na minha lista de indicações, inclusive para aqueles que não descobriram ainda o prazer da leitura.
Pelos contos de Cheever perambulam personagens típicos da classe média (de todas as matizes, dos mais próximos às classes baixas até os que beiram a bonança das classes altas), preocupados com seus rendimentos financeiros, seu orçamento, sua situação conjugal, seus filhos e as responsabilidades de ter um lar. Como Conti apresente no prefácio (ótimo, por sinal), ao incidir seu foco nesse “universo”, Cheever acabou atraindo as críticas de que seus escritos não tinham grandiosidade o suficiente para figurar nos cânones, sendo, portanto (e de maneira um tanto torpe) taxados de subliteratura.
Porém, veio aqui em defesa de Cheever, já que seus contos têm tamanha elegância, tanto no preciosismo com que escolhe os adjetivos, como na estilosa forma como conduz sua narrativa, que não podem ser renegados ao patamar de subliteratura. É preciso reconhecer que sua literatura não explora profundamente grandes dramas humanos existenciais ou profundas questões filosóficas, ele “peca” (digamos isso com todas as aspas que esse adjetivo, nesse caso, merece) quando restringe seus contos a esse estrato social, explorando seus dilemas e a árdua e às vezes melancólica rotina a que são submetidos, mas a personalidade com que ele passeia por esse tema é tamanha, que ao invés de restringir-se, ele amplia e traz para a superfície da literatura um nicho que se torna de certa forma “universal”.
Suas reflexões mais pujantes aparecem em rasgos no texto aqui e ali, elas não são o eixo sobre o qual as narrativas se estruturam, e sim conseqüências do correr da pena ou do repique das teclas da máquina de escrever. Seu estilo tem algo de Fitzgerald e Salinger, como um amálgama da elegância do primeiro e um pouco da interlocução com o leitor do segundo.
Os personagens dos seus contos se inserem entre a bonança e a pompa tipicamente “fitzgeraldiana” da high society, e as preocupações de pobreza das classes baixas. A classe média tem seu retrato pintado com cores sóbrias e ao mesmo tempo folgazãs, elegantes sem serem ostensivas, graciosas sem serem por demais pomposas, que não deixam que o autor caia em frivolidade, embora haja pitadas de comicidade em diversos momentos.
Dessa prosa deliciosa é que surgem histórias de famílias buscando riqueza e estabilidade (Ó cidade dos sonhos falidos, Os Hartley, O invasor de Shady Hill); problemas conjugais (Temporada de divórcio; O nadador; Oh, juventude e beleza!; Os males do Gim; Lamento Amoroso; Marito in città); as intrincadas e tensas relações familiares (A cômoda; Adeus, meu irmão; Reencontro); a preocupação com status e respeitabilidade (Só mais uma vez, O pote de ouro) situações cotidianas suburbanas alçadas a circunstância literária (O bicho da maçã, O caminhão de mudanças vermelho, O enorme rádio); além de alguns contos que nos permitem entender a própria compreensão do autor acerca da escrita e da Literatura (O mundo das maçãs; Miscelânea de personagens que ficarão de fora; Mene, Mene, Tekel, Upharsin)
Nesse “universo” do meio, que varia entre idílio e limbo, surgem situações cômicas, casais em briga, festas domésticas, preocupações financeiras, problemas empregatícios, construções e desmoronamento de carreiras, divórcios, dia-a-dia familiar etc. John Cheever consegue explorar, mais indireta do que diretamente, preocupações como a mediocridade, a monotonia, os dilemas da vida conjugal, a fugacidade do sucesso, os sofrimentos do fracasso, tudo isso sem quase deixar Nova York e os subúrbios nos quais suas histórias tomam lugar.
O escritor, colaborador da The New Yorker de longa data, que levava uma vida que parecia perfeita, traduziu para seus contos o que parecia ser a antítese de seu cotidiano. Porém, assim como as famílias e os lares promissores da ficção tinham uma tragédia, um adultério, um divórcio ou um escândalo esperando na esquina, o verniz da estabilidade e da constância de sua vida descascou e deixou a mostra uma realidade que dava as caras na ficção: alcoolismo, vida doméstica conturbada, a difícil relação com a família etc.
Cheever mostrou que o diálogo entre ficção e realidade não é tão amigável como pode parecer, mas que, mesmo nessa tempestuosa relação, com ecos para ambas as partes, há espaço para espirituosidade e talento.
Mais uma excelente resenha, Lucas. Não conhecia o autor mais fiquei muito interessado nesse universo “classe média” nova iorquino. Valeu a dica.
@Sammy Newton
Cara, pode comprar que é bom sim, vale a pena. Como eu disse, o autor não toca em grandes questões, nem em metafisica, crises existenciais, enfim, esse emaranhado de reflexões transcendentais que encontramos na literatura. Mas mesmo assim ele consegue construir um universo familiar, estiloso, que proporciona uma leitura agradável e divertida sem se tornar vulgar ou rala demais. Ele tem um certo receio ao tocar no tema “classes baixas”, de modo que ele circunde esse tema talvez como forma de evitar críticas ou assumir uma militância mais palpável. Acho que dá para caracterizar a prosa dele como burguesa, embora isso seja estereotipá-la em alguma medida, já que esse termo está carregado de significado histórico e político, mas, apesar dessas lacunas (que nem faz muito sentido ficarmos “cobrando” dele algo que ele não se “propôs a fazer”, não é?), dá para dizer que ele acerta muito nas histórias.