Levei trinta anos para acreditar que era possível encarar a opus magna de James Joyce, o mais famoso dos livros que ninguém leu: Finnegans Wake, ou, na tradução brasileira, Finnicius Revém. Convenci-me de que é possível enfrentar o gigante de seiscentas e tantas páginas (sendo que cada uma delas, por sua densidade, vale por umas trinta, nivelando por baixo); no entanto, saí da experiência convicto de que, se, por um lado, o confronto é possível, a leitura, por outro, não o é. Pelo menos não uma leitura no sentido tradicional. Ora, vejamos:

1) O clássico processo de leitura se inicia na primeira página de um volume e segue, durante determinado tempo, um processo de apreensão de sentidos, até que se chegue à derradeira página (havendo depois, é claro, espaço para “retrogostos” mais ou menos duradouros). E é isso. Com Finnegans Wake, o fim jamais chega, e não se trata apenas de uma constatação da obviedade formal de que a última frase (aparentemente incompleta) encaixa-se à primeira (também aparentemente iniciada pela metade), constituindo, assim, em tese, um infinito ciclo de leitura e releituras (como na velha piada da loira que ficou horas virando um cartão no qual algum sacana havia escrito, nas duas faces, a frase “vire para o outro lado”); trata-se, antes, de uma questão de justiça e ressonância: se Joyce levou dezessete anos para compor seu heterodoxo romance (de 1922 a 1939), publicando, vez ou outra, trechos do que ele chamava de “work in progress”, é justo que o encontro com a obra se dê também via uma leitura “in progress”, feita e refeita ao longo de anos, de modo não necessariamente linear – isto é, se o processo de criação do Finnegans Wake foi caótico, fragmentado e moroso, a fruição da obra tão mais fidedigna ao espírito joyceano será quanto mais estilhaçada e alongada se fizer.

2) “riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs.” Assim começa o livro, e, nessa famosa frase de abertura, já está uma das inúmeras referências a Vico que encontraremos ao longo do longo texto. Giambattista Vico, filósofo italiano que produziu sua obra no século XVIII, é considerado um precursor do pensamento sistêmico e das teorias de complexidade, por causa de sua oposição ao paradigma reducionista, mecanicista e cartesiano. Portanto, já nos avisa Joyce na primeiríssima frase do livro, a leitura deve ser guiada por… por… pensando bem, a leitura não deve ser guiada. Eis o mistério. [Aliás, Vico também é um dos pais da teoria da história cíclica, e, assim, o Finnegans Wake não poderia deixar de ser este irônico Uróboro que é.] [Aliás de novo, o mistério deve prevalecer, espesso. No capítulo 2 da parte II da obra, um dos meus favoritos, os três filhos do núcleo familiar protagonista estão estudando suas lições escolares, e a narrativa segue tocada pela voz do narrador, que se confunde com o livro didático que eles estão lendo, e mais por anotações marginais feitas pelos dois meninos e notas de rodapé feitas pela menina. Em um dos apontamentos escritos nas margens, pergunta um dos garotos “will you carry my can and fight the fairies?”, o que Donaldo Schüler, o excelente tradutor brasileiro, verteu como “podes portar minha candeia e afugentar as fadas?” A única resposta honesta é não.]

3) Se o próprio Joyce, a certa altura, julgou-se incapaz de concluir a obra e cogitou delegar a escrita a um certo amigo seu chamado James Stephens, você pode pensar em desistir da leitura, é claro. Porém, assim como Joyce, você também deve voltar atrás.

4) Uma leitura tradicional, já dissemos, persegue a compreensão do sentido do texto em duas esferas: primeiro, a macrocompreensão, ou seja, o entendimento da obra em sua totalidade, com seu enredo, seus episódios e sua “intenção”; segundo, a microcompreensão, isto é, o desvendar do significado de cada palavra ou expressão. Joyce deliberadamente frustra ambas as abordagens. No plano “macro”, o leitor não encontrará um enredo bem formatado ou sequer personagens claramente delineadas: o tom é de delírio e suspensão da lógica, consubstanciando uma narrativa tocada adiante por livre associação e que busca mimetizar a experiência do sono e dos sonhos. No plano “micro”, a serviço dessa perseguição pelas engrenagens vaporosas do inconsciente, surge uma linguagem inovadora (inovadora porque indomada, insubmissa aos ditames de qualquer norma, profusa em neologismos, onomatopeias e trocadilhos) e radical (radical principalmente porque vai à raiz das palavras buscar significados enterrados sob a terra, espalhados fractalmente ao fundo dos vernáculos oficiais): Joyce vem ao ataque com toda a força de sua idioglossia, esse idioma babélico e apenas seu, no qual especialistas já detectaram despojos de mais de sessenta línguas diferentes, orbitando, entrechocando-se e fundindo-se ao acaso. Se o próprio autor sabota as tentativas de macro e microcompreensão, o que fazer? Mais uma vez, o próprio livro dá a resposta: Finnegans Wake nada mais é do que um grande sonho narrado; por isso, o melhor momento para lê-lo é na hora em que o sono bate, na antecâmara entre a vigília e o reino de Morfeu. E leia até que as imagens e os sons hipnagógicos tomem conta dos sentidos, até que os braços fraquejem e o pesado volume caia ao chão. Nesse momento, nesse exato momento, você certamente conseguirá escutar como de fato soa bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk! [Note que, lendo antes de dormir (ou já quase dormindo), a tendência natural é que o processo de leitura se torne caótico e demorado, o que, como vimos, no caso do Finnegans, é altamente recomendado.]

5) Outra alternativa é a leitura abastecida por uísque, bebida da qual o próprio Joyce era ardoroso apreciador. O nome da bebida vem do gaélico irlandês uísce beatha, que significa “água da vida”, expressão que poderia muito bem ser aplicada para descrever o “rio da vida”, esse rio que flui e reflui ao longo do texto joyceano desde a primeira frase (riverrun, past Eve and Adam’s), metaforizando o transcurso da existência humana em uma corrente universal que, ao contrário do que diria Heráclito, vai e volta a ser o que era, repetindo-se em ciclos nos quais, a cada morte, sucede-se um (re)nascimento. Aqui, é oportuno lembrar a canção popular que serviu de mote e inspiração para Joyce na concepção do seu livro, uma peça cômica surgida em 1850 e intitulada Finnegan’s Wake, titulo que, em deliciosa “amtriguidade” perdida no português, pode ser traduzido como “O velório de Finnegan” ou “O despertar de Finnegan” ou “O rastro de Finnegan”. A letra da animada canção fala de um sujeito de nome Tim Finnegan que, embriagado, cai de uma escada e quebra a cabeça. Durante o velório, os presentes se exaltam e derramam um tanto de uísque sobre o cadáver de Finnegan, o que faz o morto retornar à vida, erguer-se do caixão e juntar-se às celebrações (essa é, aliás, a primeira cena no livro de Joyce). O uísque, portanto, na canção e consequentemente no romance, é agente de morte e vida. [Se você for optar por essa alternativa de leitura, favor degustar um uísque 12 anos ou superior – o petardo literário de Joyce merece.] [Repare que Joyce, ao dar título para seu livro, tomou o nome da canção popular e limou-lhe o apóstrofo de modo a sugerir uma forma plural, indicativa de vários Finnegans, ou seja, todos nós que estamos aprisionados na circularidade da existência e suas passagens, todos nós, membros da humanidade, que temos nosso despertar, nosso velório e que deixamos nossos rastros no mundo.]

6) Compreenda que, a rigor, Finnegans Wake não conta sequer com personagens propriamente ditas. Existe, sim, um núcleo familiar principal, cujos membros são muito mais do que personas: cada um deles é, antes de mais nada, uma entidade hipotética irrepresentável em si mesma e evidente somente através de suas manifestações, um núcleo agregador de símbolos, imagens e mitos. Em outras palavras, cada “personagem” (sempre entre aspas), com suas características básicas, sempre basilares, remetentes a energias primevas, funciona como uma espécie de ímã às avessas que Joyce faz descer sobre o microcosmo de Dublin (mais especificamente do pitoresco bairro-vilarejo de Chapelizod) com o intuito de atrair e captar tudo que lhe é semelhante. Temos H.C.E. (Humphrey Chimpden Earwicker), o homem, sintetizador do masculino, Adão decaído que pode ser, ao mesmo tempo, Noé, Finn Mac Cool (legendário caçador do folclore irlandês), Tristão (o trágico cavaleiro da Cornualha), a própria cidade de Dublin ou mesmo o beberrão Finnegan em versão aprimorada. Sua esposa A.L.P. (Anna Livia Plurabelle), por sua vez, é o feminino universal, Eva e Lilith a um só tempo, é mãe e vadia (mulher de tantos homens, como fofocam as lavadeiras à margem do rio Liffey no saboroso capítulo 8 da parte I), é a princesa Isolda em todo seu descalabro perante os desencontros com seu amado, é a mulher-rio que forma a torrente da narrativa, estando implícita já no famoso “riverrun” que abre o livro e cuja voz em monólogo vai circularmente fechar (fechar?… não, reconectar) a obra. Por fim, os três filhos: Shem, o escritor, predileto de A.L.P., Shaun, o carteiro, e Issy, menina repleta de desejos reprimidos tanto pelo pai quanto pelos irmãos. Frente a tal configuração, estabelece-se um simulacro da horda primitiva, sustentado por um triângulo edípico e pela clássica rivalidade entre irmãos [as menções a Hórus e Osíris, Esaú e Jacó, Caim e Abel, Rômulo e Remo são incontáveis (explícitas e, principalmente, implícitas)]. Mas tenhamos em mente o que foi dito: as personagens são fluidas, sem contornos rígidos, múltiplas. Em Ulisses, no capítulo “Calypso”, Molly indaga Leopold Bloom, seu marido, sobre o significado de metempsicose, e a palavra fica em ritornello, instilando, no texto, um dos temas que mais aguçam a obsessão de Joyce: a transmigração das almas. Em Finnegans Wake, tal obsessão, irrefreada, atingirá um paroxismo, chegando a constituir a própria essência da urdidura ficcional: aqui, as almas H.C.E. e A.L.P. (e até mesmo as almas dos três filhos) assumem inúmeras formas, diferentes corporificações, sempre de modo abrupto, sem justificativas, como nos sonhos (pois é isso que o livro é), recebendo, ao longo do texto, nomes múltiplos. H.C.E., por exemplo, é chamado por centenas de nomes, estando entre eles: Harold ou Hamphrey Chimpden Earwicker, Haromphreyld, Here Comes Everybody, Mr. Makeall Gose, Mr. Porter, etc.

7) Por fim, vale recordar os últimos versos do refrão da cançoneta popular que inspirou Joyce: Isn’t it the truth I told ya? Lots of fun at Finnegan’s wake! É exatamente isso: a leitura de Finnegans Wake, apesar de impossível na acepção tradicional do termo (ou talvez exatamente por isso), pode ser muito divertida. Para começar, há um mistério que permeia toda a não-trama: no capítulo 2 da parte I, H.C.E. é acusado de ter molestado sexualmente duas jovens no Phoenix Park (se a acusação é justa ou injusta, cabe sempre ao leitor investigar, nas entrelinhas das entrelinhas), e esse episódio leva H.C.E. a uma fuga do convívio social, a perseguições e ostracismos, e também a um julgamento no qual uma importante evidência é uma carta escrita por A.L.P., páginas cujo conteúdo é apenas aproximado do leitor tangencialmente, como, por exemplo, no capítulo 1 da parte III, no qual Shaun, encarregado de entregar a carta, atravessa uma via sacra de quatorze perguntas sobre o teor do documento, sessão inquisitorial conduzida por quatro “mestres” que representam Marcos, Lucas, Mateus e João, os quatro evangelistas canônicos (e a versão da própria A.L.P. para a missiva fica guardada até o final, quando sobrevém o seu surpreendente monólogo). Além disso, há uma pergunta que paira e que instiga debates acalorados entre os teóricos, algo tipo “enigma de Capitu”: quem é o sonhador que sonha toda a história e todas as imagens e todas as outras criaturas que formam esse amálgama tresloucado que é o Finnegans Wake? Seria aquele que conhecemos como H.C.E.? Seria Shem? Seria um ser ficcional externo a toda a narrativa e apenas insinuado? Leia e faça sua aposta. Finalmente, há as inúmeras piadas, os trocadilhos, as gagues impagáveis de Joyce, capazes de arrancar uma gargalhada a cada página. Eis o fato: Joyce podia ser um tremendo erudito, mas, antes de mais nada, era um irlandês fanfarrão.

Sobre o autor: Rafael Bán Jacobsen é Físico da UFRGS e escritor. É autor dos livros Tempos & costumes (Prêmio Açorianos de Destaque em Narrativa Longa / 1998), Solenar (vencedor do Prêmio Açorianos / 2006) e Uma leve simetria (finalista do Prêmio Açorianos / 2009 e do Prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores / 2010). Seu novo romance, Imemorial das pedras, ainda inédito, foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária em 2010.