O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna, lançado pela Companhia das Letras em 2006, pipoca em listas de livros recomendados para um público específico que curte uma narrativa mais pop, mais desleixada e descompromissada. Não. Longe disso. A história de Manoel dos Anjos, o Mané, um garoto zoado na infância que recebe a oportunidade de jogar no time de juniores do Hertha Berlim, é uma daquelas gratas surpresas, tanto de história quanto de conteúdo.

De início somos surpreendidos com frases rápidas e repletas de palavrões, aparentemente duas crianças estão brigando, uma delas é o tal do Mané e a outra é um gordinho, em volta dos dois o grupo de “amigos” da cidade esperando ver quem levará a melhor. Em seguida, uma narração em primeira pessoa, o Mané, com erros grotescos de português e diversas descrições pornográficas. Logo em seguida, alguém soltando frases em alemão. Desse ponto em diante, Sant’Anna já fisgou sua atenção, você quer saber onde o protagonista está, se é Mané quem fala alemão, quem são seus amigos e muito mais.

Na verdade, O paraíso é bem bacana traz mais de um narrador, em todas vezes eles não se apresentam, apenas vão narrando fatos soltos, só que nessas histórias desconexas, saltos no tempo, fluxo de consciência (ou algo que o valha), os detalhes se juntam aos poucos mostrando que cada narrador é um personagem e seu papel na história do garoto Mané, de Ubatuba. É importante ressaltar que as histórias contadas revelam o futuro do garoto superficialmente, depois são retomadas por outro narrador, com novos detalhes, novos personagens e assim transformando tudo numa crescente.

Mané está no Paraíso prometido por Alá, com suas setenta e duas virgens, muito guaraná e muito sexo estão a sua disposição depois que ele tentou explodir um estádio. Ele é um mártir – ou marte como gosta de dizer. O garoto saiu de Ubatuba humilhado por seus “amigos”, fez uma breve passagem pelo Santos Futebol Clube (apontado como o novo Pelé) e foi parar na Alemanha onde logo ganha destaque. Todavia, o garoto não era mulçumano na cidade do litoral norte paulista, ele não era nada, quer dizer, ele era um viadinho filho-da-puta que tinha bico-de-chaleira. Sim, tudo isso descrito na mais perfeita normalidade, a certo ponto vemos que o Mané é vítimas de todas as crianças, mas nunca, nunca foi ligado em religião, só em americano no prato e em mulheres que povoam os filmes eróticos produzidos na sua cabeça. O garoto se torna um recluso e só consegue aflorar seus pensamentos através do onanismo.

Ele é um morto vivo, um vegetal fanático e tarado.

O livro não é apenas do Mané, é também do Tomé, um músico que tenta a sorte na Alemanha mas acaba virando um junkie e um dedo duro; é também a história de Mnango, um príncipe africano que joga no time profissional do Hertha; e também a história de Uéverson, parceiro de ataque de Mnango e um dos personagens mais impagáveis que a literatura brasileira já produziu. É com esse personagem, inclusive, que conseguimos notar todo o talento de Sant’Anna em escrever da forma que as pessoas falam, é nítido o sotaque e a malandragem carioca do atacante do Hertha, assim como o alemão e o inglês forçado e bem improvisado de Mané – que nem português consegue falar direito.

Apesar da narração ordinária, personagens de bom coração, personagens ruins, personagens ambíguos, personagens soltos, pensamentos soltos, dor, religião, a fé, jogadores de futebol, a promiscuidade, a prostituição, o amor, as drogas, apesar disso tudo, o turbilhão criado por André Sant’Anna é muito forte e devastador, longe do ordinário – mas bem perto também. Mané (ou Muhammad Mané) é o anti-herói brasileiro do século XXI. Que narrativa perigosa e que narrativa certeira, a história desse garoto e todos os envolvidos, direta ou indiretamente, com ele são com certeza uma ousadia na literatura nacional atual, ou melhor, um romance demasiadamente brasileiro – cativante e pulsante.