Soube – como muitos de seus leitores brasileiros – da existência de Robert Walser através de Enrique Vila-Matas. E digo ‘através’ mesmo, sem medo de errar: o que este espanhol faz com a literatura é algo não menos que fantástico. Não só um escritor genial, mas um reescritor muito culto, um ensaísta profundo de várias questões humanas essenciais e se faz de vidro translúcido para a literatura de vários outros autores importantes. Já no primeiro livro que li de sua autoria, Walser aparece vez ou outra (Paris não tem fim). No O Mal de Montano, as referências ao suíço aumentam consideravelmente. Mas é com Doutor Pasavento que Vila-Matas nos joga na cara: “como assim AINDA não leu Walser?!”.

Robert Walser nasceu na Suíça em 1878, e em 2011 a Companhia das Letras publicou apenas seu segundo livro aqui no Brasil: Jakob von Gunten, considerado por muitos críticos a obra-prima do autor. O outro livro do autor publicado no país é O ajudante, pela editora Arx (2003). A lista de admiradores do cara é extensa e ilustre (além, é claro, do próprio Vila-Matas): W. G. Sebald, Walter Benjamin, J. M. Coetzee, Elias Canetti e Susan Sontag são só os nomes que estão na contracapa desta edição da Companhia, elogiando o cara.

Jakob von Gunten é o diário do sujeito, que passa a maior parte do tempo internado no Instituto Benjamenta, um lugar destinado a criar servos, digamos.  E é a partir do Instituto que se molda todo o enredo: a relação peculiar de Jakob com o senhor Benjamenta, diretor; o seu estranho caso com a professora Lisa Benjamenta, irmã do diretor; a amizade de amor e ódio com Kraus, colega de Instituto; a admiração contida e ambígua que tem pelo seu irmão; e vários outros pequenos nós com que Walser vai criando um romance em forma de diário, com altas doses de um ensaio gostoso de ler, mas que, assim como o Vila-Matas faz nos dias de hoje (também herança do suíço?), toca em questões profundas e delicadas.

Muitas vezes, o texto é recheado com esse humor fino que os grandes autores conseguem impor num texto. Por exemplo:

“Eu, de minha parte, serei algo bem inferior e pequeno. A sensação que me diz que assim será é tão completa e inabalável como um fato consumado. Deus meu, e ainda assim tenho toda esta coragem de seguir vivendo? Que há comigo? Muitas vezes, sinto certo medo de mim, mas não por muito tempo. Não, não, confio em mim. Mas não é isso verdadeiramente cômico?”

(Trecho de Jakob von Gunten, Companhia das Letras, 2011, tradução de Sergio Tellaroli)

É com trechos curtos (dizem que Walser foi um verdadeiro mestre nas histórias curtas), que raramente passam de duas páginas, separados por espaços na edição, tal qual anotações de um verdadeiro diário, que o autor cria um ritmo narrativo bastante interessante.

Um erotismo ambíguo também é marca profunda do personagem, que o aplica a homens e mulheres como que indiscriminadamente.

Outra coisa fundamental do livro: a ironia com que Walser cria um internato com um fim como esse é um resumo do sentimento que se tem ao lê-lo. Estranheza. Dizem que existe um limite entre a realidade e a ficção, que a literatura pode ser um espelho daquela por meio desta, por exemplo. Mas é claro que a literatura avança. Isso é o que Walser faz aqui: a verossimilhança do seu Instituto Benjamenta é certeira e ao mesmo tempo fugidia. Ele não existe. Mas é, e avança.

“A parca realidade: que tremenda ladra ela às vezes é. Rouba coisas com as quais, depois, não sabe o que fazer. Ao que parece, diverte-se espraiando melancolia. Melancolia que, aliás, torno a querer bem e que me é muito, muito valiosa. Porque forma.”

(Trecho de Jakob von Gunten, Companhia das Letras, 2011, tradução de Sergio Tellaroli)

Jakob von Gunten teve um efeito certeiro em mim. A perturbação de conviver por 152 páginas com esse narrador um tanto quanto instável é, literariamente, deliciosa.

Sobre o autor: Guilherme Sobota é estudante de jornalismo da UFPR, e trabalha na redação do  Cândido, jornal de literatura da Biblioteca Pública do Paraná editado por Rogério Pereira e Luiz Rebinski. Seu autor preferido no momento é Enrique Vila-Matas, mas também gosta muito de outros tipos de literatura, desde o realismo francês até a literatura brasileira contemporânea.

Jakob von Gunten

Robert Walser
Tradução: Sergio Tellaroli
152 Páginas
Preço sugerido: R$39,00