A primeira impressão é a que fica. E no caso dessa Estórias N, revista de literatura da editora Arte e Letra, a primeira impressão já foi surpreendente. Eu, que nunca tinha tido contato com essa publicação antes, espantei-me com a qualidade gráfica e o cuidado com que o acabamento da revista foi feito. Uma diagramação não apenas bonita, mas também funcional, e belas ilustrações de Arthur Rackham me fizeram acreditar que o conteúdo da revista também deveria estar acima da média.

E minhas expectativas foram prontamente atendidas. Em pouco mais de 100 páginas a revista consegue trazer para o público de língua portuguesa uma seleção bastante boa de contos, sejam traduções ou trabalhos originais.

Existem contos para todos os gostos: As filhas do falecido coronel, de Katherine Mansfield, apresenta a tradução de Beatriz Sidou para escritora neozelandesa e amiga de Virginia Woolf. O estilo de Mansfield é um tanto quanto brusco, e nesse conto, que parece iniciar em um momento aleatória da vida das personagens – mas essa é só a impressão inicial – ela aproxima-se das filhas solteironas de um coronel falecido e penetra-lhes a psiquê.

Um lugar, conto original do curitibano Carlos Machado, também segue essa veia de intromissão psicológica, obviamente que desprezando os artifícios de um modernismo de língua inglesa que Mansfield usa, e aproveitando, em seu lugar, os trejeitos da contemporâneidade brasileira.

Em seguida os fãs de ficção científica podem deliciar-se: Jules Verne e Isaac Asimov. Traduzido por Natália Florêncio, o conto de Verne Um drama nas alturas é carregado no amor pela ciência e na aventura, tão caros ao autor francês. No conto um balonista sofre uma intromissão em seu vôo, com consequências perigosas.

Já Asimov foi traduzido por Ana Cristina Rodrigues, e aparece com o conto Ao cair da noite. Esse é um dos pontos mais altos da coletânea e da obra de Asimov. O conto mostra uma sociedade que floresceu em um mundo em que, por conta de seus seis sóis, nunca anoitece. Ou melhor, quase nunca: parece que isso acontece a cada 2500 anos, levando a civilização previamente existente ao colapso. É justamente no momento exato antes disso que incide o foco da narrativa. É interessantíssimo notar o cuidado de Asimov: pode-se perceber que existe uma ciência relativamente avançada, mas a inexistência da necessidade de iluminação artificial fez com as coisas tomassem caminhos bastante distintos dos nossos.

A letra U, de Iginio Tarchetti (tradução de Sílvio de Bettio) é um conto mais ingênuo, sobre um homem que culpa, por sua desgraça pessoal e por todas as mazelas humanas, a vogal ‘U’, com seu som agourento e assustador.

Em seguida surge H. Rider Haggard, um dos fundadores da chamada literatura lost world, um gênero que remete a caçadores e aventureiros, tipicamente colonialista. À despeito da discussão – interessantíssima – que esse gênero poderia levantar, o conto (Chances Minguadas, tradução de Adriano Scandolara) prima pela tensão e pela ação – trata-se, afinal, de um caçador inglês enfrentando uma família de leões.

Os dois últimos contos são exemplos primorosos da literatura argentina. O primeiro dos dois é O matadouro, de Esteban Echeverría, é uma de suas pedras fundamentais. Em tom naturalista – ou, talvez, gore – e com ares de denúncia (panfleto?) Echeverría ataca o Restaurador (Juan Manuel Rosas, o governador da província de Buenos Aires) através da alegoria de um matadouro em que, após um jejum causado pela quaresma e por chuvas incessantes, o sangue volta a correr e os abutres, cães e miseráveis voltam a frequentar, num clima político que beira a insanidade. O conto foi traduzido por Tiago Guilherme Pinheiro – daqui do Meia.

O segundo conto argentino – e últmo da revista – é Como um peixe no gelo, de Ricardo Píglia, traduzido por Iara Tizzot. O conto é sobre um acadêmico que obtém uma bolsa para estudar o escritor italiano Cesare Pavese. E, porque não, o conto é sobre a relação daquele que escreve com sua escrita e com o mundo. Para quem não conhece, é uma ótima oportunidade para se entrar em contato com a obra de Piglia.

Enfim, a revista é um esforço notável e de qualidade ímpar em todos os sentidos. Vale a pena para se conhecer novos autores – muitos dos quais pouco conhecidos no Brasil – ou ainda para se ter contato com obras menos conhecidas de grandes nomes. O seu único grande defeito é que não tenha uma frequência maior.

Arte e Letra: Estórias N

Autores: Katherine Mansfield, Carlos Machado, Jules Verne, Isaac Asimov, Iginio Tarchetti, Henry Rider Haggard, Esteban Echeverría e Ricardo Piglia

Tradutores: Iara Tizzot, Natália Florêncio, Beatriz Sidou, Adriano Scandolara, Ana Cristina Rodrigues, Silvio de Bettio, Tiago Guilherme Pinheiro.

Ilustrações: Arthur Rackham

104 Páginas

Preço sugerido: R$20,50

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Editora Arte & Letra