Praticamente inofensiva. Este é o título de um dos volumes da trilogia de cinco livros de Douglas Adams iniciada com O guia do mochileiro das galáxias. O rótulo de “praticamente inofensivo” não é algo exclusivo do planeta Terra (em relação às civilizações mais desenvolvidas de outros planetas) ou meu (em minhas patéticas investidas no terreno amoroso): acredito que possa também ser utilizado com relação aos livros.
Comparemos a literatura a outros dois tipos de arte amplamente difundidos pela internet: cinema e música. As pessoas são mais suscetíveis a reações imediatas nestes: por exemplo, podemos levar um susto tanto no caso de uma nota dissonante que é tocada “do nada” em uma música calma quanto assistindo a uma cena em que, bruscamente, um mascarado corta a cabeça de um personagem com uma motosserra. Já na literatura, tais reações são dificultadas pelo papel ativo da leitura: se você é daqueles que lê lentamente, “saboreando” cada palavra, maiores são as chances de você conseguir prever qualquer reviravolta. Há um lag que impede algumas surpresas mais banais.
Fora que, na leitura, a visão periférica é algo que ajuda nessas previsões: sem querer percebemos que a palavra “lâmina” (ou “nudez”) aparece algumas linhas abaixo e já nos preparamos para alguém se cortando (ou tirando a roupa). Além disso, se chegamos a um momento excruciante da fruição de obras em cada um desses meios, a taxa de eficácia do ato de fechar um livro é muito maior do que a de fechar os olhos em um filme ou tapar os ouvidos em uma música (ou, em ambas, pegar o controle remoto e desligar o maldito aparelho).
Não falo de um ponto de vista técnico, mas do alto de minha “sabedoria em senso comum”. É muito provável que você tenha conseguido entender o que eu quis dizer, assim como há uma probabilidade alta de que não saiba aonde quero chegar. Pois bem, here we go: O homem despedaçado conseguiu fazer isso comigo. E não só fez, como conseguiu fazê-lo um bom número de vezes. Sabe quando você lê algo e sente uma agonia súbita, ou um arrepio, e fecha o livro como se desse tempo de não “ver” aquilo? Sim, eu presenciei um bom par de cabeças decepadas por motosserra.
Não é como se eu não esperasse. Inclusive, na primeira metade do livro, acostumei-me a ter a expectativa de alguma morte. A partir de certo momento da leitura, eu decidi que minha resenha do livro seria centrada no caráter da mortalidade, da finitude da vida humana. Sim, eu faria um texto poético, abordando alguns dos seus temas filosóficos. Muito provavelmente dissertaria sobre o pensamento de que todas as guerras são iguais – sinceramente não conseguiria escolher o melhor conto que aborda esse viés, ainda que tenha achado belíssimos (e possa destacar) Pequena parábola para os homens-rio, À espera do inimigo e o genial Convergência. Talvez falasse do poderoso conto homônimo e da questão da identidade fragmentada ou de… Ah, quer saber de uma coisa? Vou parar de folhear o livro e ater-me ao plano.
Vou falar de amor.
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Parte disso é porque, se enveredasse por aqueles outros caminhos, provavelmente daria a entender que esta é uma obra difícil de ler. Depois de terem me convencido de que esse livro seria uma boa pedida para a estreia de minha parceira com a Dublinense, resolvi ler alguns textos a respeito dele e… eles me pareceram informar que a obra era, se não hermética, ao menos bastante pretensiosa. Um livro para se discutir num café, usando palavras difíceis e fazendo gestos com as mãos segurando cigarros metafóricos, uma vez que proibidos já há algum tempo em ambientes fechados.
Falarei de amor porque não considerei este um livro “cabeçudo”. É, sem dúvida, inteligente (minha mente pipocou com a quantidade de abordagens teóricas interessantes em alguns contos), mas tão palatável, gostoso de ler, que eu me sentiria falso se me desse ao trabalho de pesquisar termos filosóficos para deixar o texto mais pomposo.
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Gostei bastante do sexto conto do livro, Buraco negro. Talvez eu tivesse me esquecido de sua força, se não houvesse Salamandra, o quarto na contagem inversa. Os dois totalizam nove páginas e podem servir de teaser para quem se interessar em comprar o livro. Se você encontrar o volume na livraria, recomendo que se sente e experimente lê-los. Se considerar a leitura tão boa quanto achei, pode comprar sem dó: há ainda um bom número de contos melhores a serem lidos na coletânea.
Buraco negro e Salamandra: ambos se complementam, ainda que em lados opostos do livro. Em um, o narrador é um homem que fala de sua última conquista, Isabel; no outro, é uma mulher que fala do último coitado apaixonado por ela, Jonas. Não fosse o final do primeiro (se o considerarmos como realista, no âmbito da narrativa, não metafórico), eles poderiam ser considerados como dois pontos de vistas para a mesma relação: a falta do nome dos respectivos narradores parece incentivar essa teoria – ambos são facilmente denomináveis como heartbreakers.
Relacionamentos amorosos também podem ser vistos como relações de poder: creio que todo mundo prefira ser o heartbreaker a ser o heart broken. Admito que isso possa ser algo da minha cabeça, mas todo mundo gosta de achar que é perigoso, que está no domínio da situação e que, no mínimo, dará trabalho para ser esquecido. Ninguém quer ser “inofensivo” ou “fofo”, mas, sim, o primeiro amor, a paixão avassaladora da vida de alguém – e, claro, sair ileso da situação.
No dia seguinte, Isabel disse me amar. Seus olhos angustiados revelaram que estava sendo consumida por sensações contraditórias, e não havia fuga, não mais. Como um ventríloquo, eu disse aquilo que ela queria ouvir, afirmei que a amava. É difícil ocultar a tristeza. Isabel não era a primeira nem a última mulher que ouvia essas palavras. (p. 40, Buraco negro)
Eu menti dizendo o que ele queria ouvir. Pareci convincente, ele não notou que estou sendo irônica, não sinto nada por um homem assim, capaz de sucumbir no crepitar lento dos meus olhos, no farfalhar dos cabelos negros. Eu não merecia um homem apaixonado, e sim um homem de verdade. (p. 136, Salamandra)
Cinismo à parte, às vezes penso que só vejo pessoas perigosas. E estou um pouco cansado delas. Não na literatura: na “vida real” mesmo. Pessoas que querem tornar altamente significativo cada um de seus relacionamentos, mas que, a qualquer e mínimo sinal de insatisfação, chutam o balde e não ligam mais para o outro. Pessoas que não estão nem aí logo de cara. Pessoas que dão um mau nome ao amor. Esse tipo de gente vive como se fosse o(a) narrador(a) de um dos dois contos de Gustavo Melo Czekster – a cada releitura que faço destes, eles parecem mais realistas e, ao mesmo tempo, mais incisivos como símbolos. “Eis, então, outra pista possível para investigarmos o que torna a literatura diferente do BBB: enquanto naquela os personagens fictícios, cheios de vícios, nos fazem pensar o quanto não podemos nos tornar assim, neste constatamos, com horror e tristeza, que nós já somos assim.”, disse Cezar Tridapalli, em artigo recente, que conectei imediatamente ao que penso enquanto escrevo este texto, substituindo “BBB” por “vida em geral”.
Essas pessoas só se esquecem da capacidade regenerativa do coração, quase igual à do fígado. Esquecem-se de que a expressão “primeiro amor” é passível de ser relativizada e que uma pessoa que ama mesmo é capaz de ter vários deles: a menina criada pela avó judia em quem você deu o primeiro selinho, paixão eterna da infância; a garota que, na pré-adolescência, o fez perceber que era possível ser o escolhido, mesmo no meio de um amplo conjunto de candidatos; a jovem loira (ou ruiva?) que, durante muito tempo, o fez pensar em abandonar faculdade e família e voltar para Porto Velho; a paixão platônica de anos; a primeira vez que o amor foi correspondido no tempo certo, o que resultou em um namoro curto, mas bom; um fora monumental, só pra lembrar que não são todas as mulheres que se apaixonariam por você…
Dezenas de primeiros (e grandes e longos) amores em uma vida.
Como Tridapalli disse, leio para me policiar e não ser como aqueles narradores. A literatura não tem função de guia ou manual de autoajuda, mas às vezes aprendemos algo.
Nem que seja por meio de uma psicologia reversa.
(Texto publicado originalmente em 21 de março de 2012 n’O leitor comum.)
O homem despedaçado
Autor: Gustavo Melo Czekster
Editora: Dublinense
Páginas: 160
Preço sugerido: R$ 28,00