Observação Inicial: os trechos citados do texto serão os da tradução de Millôr Fernandes por possuírem, além de uma fluência e uma teatralidade elevadas, uma facilidade de serem encontrados gratuitamente na internet.A definição de Millôr para a maior tragédia de Jean Racine é a da “paleontologia do próprio incesto, cuja explicação só encontro na origem da linguagem humana”.

Jean Racine, tragediógrafo francês, provavelmente o maior, sobrepujando até mesmo o criador dela, Corneille, e com um grau poético que só pode ser comparado a Molière ou aos tragediógrafos gregos, como Sófocles, e só pode ser superado por Shakespeare. Conhecido pela pomposidade de sua linguagem e de sua poesia, Carpeaux, além de outros críticos, chama Racine como o mais perfeito poeta da língua francesa, em grande parte pela simplicidade de sua linguagem, sem a opulenta música verbal shakespeariana (o vocabulário de Racine consiste em cerca de 600 palavras contra as magnificentes 21.000 de Shakespeare), e em parte também pela exatidão e pela placidez com que domina o verso alexandrino, o mais difícil do Ocidente, rimado de forma emparelhada, conforme taxava o cânone estético francês (Racine, como os autores de sua época e de sua terra, regia-se também por outro cânone: o das leis aristotélicas de unidade de composição [espaço, tempo, ação]). Não apenas isto, mas o fato também de Racine analisar principalmente personagens femininas e criar situações e enredos trágicos com uma tessitura rarefeita, o tornam, como dito anteriormente, um dos maiores expoentes da história do teatro, indo desde as peças de violência senequianas, como “A Tebaida”, até a culminância de sua carreira artística, com peças como Ifigênia em Áulida, preferida de Voltaire, até as peças de fundo cristão como Atália.

Desta dita “culminância de sua carreira artística”, e do todo raciniano também, a peça Fedra é um momento dramático que constitui a magnum opus do grande tragediógrafo graças à densidade psicológica de sua peça, graças à força de tensão que a peça possui: ou seja, na elevação máxima dos dois expoentes que todo e qualquer teatro deve possuir, apesar das queixas iconoclastas.

Retomando, assim, a definição de Millôr, a paleontologia do incesto feita por Racine é antes de mais nada um jogo de revelações e dissimulações, onde o erro trágico da tríade principal da peça (Fedra-Hipólito-Teseu) se dá quando os sentimentos interiores são exteriorizados pelo ato da fala, pela ação da palavra: ou seja, quando a Intenção se torna em Verbo, acarretando uma sequência inelutável de desgraças que Racine só permitiria às suas criações a superação no final de sua carreira, em especial com a peça Esther, um dos monumentos imorredouros de poesia e tetricidade da história humana, com ecos futuros no holocausto nazista.

A exteriorização da palavra, concentrada em Fedra, personagem homônima da peça e, conforme ditavam as regras de composição, também a personagem principal, é a exteriorização do incesto, o que Millôr chama de “estigma da palavra indizível”. Pois tudo em Fedra é indizível, e, como as almas infernais de Dante utilizam-se de circunlóquios para se referir a coisas sagradas, as personagens racinianas se utilizam de circunlóquios para não colocar à luz os sentimentos mais íntimos e vergonhosos que possuem, pois, no fundo, as personagens de Racine possuem a nítida visão e a consciência de que se caso a fizerem, cairiam num erro trágico insuperável.

Fedra, quando na culminância de revelar seu segredo, o segredo do incesto, cogita o suicídio: “Morro para não revelar essa ânsia funesta”. Mas não apenas isto, pois, se a peça é uma paleontologia, a ascendência de Fedra também deve compartilhar de seus frêmitos de luxúria, e isto nós observamos muito bem quando nos lembramos que sua mãe é Pasífae, enamorada de um touro e mãe do Minotauro, e o próprio Minotauro, encarcerado por ser fruto de um ato nefando, e imperador do labirinto, é irmão de Fedra ao lado de Ariádne, antiga enamorada de Teseu (atual esposo de Fedra), que foi presa num rochedo e depois se enamora com Baco…

Oras: a luxúria se impregna em toda a família, os desejos sexuais incontroláveis são o estigma que Fedra tenta esconder a todo custo, nem que para isto tivesse que destruir sua própria vida… O que ela própria sabia que seria algo impossível e vergonhoso:

“Onde irei me esconder? Só na noite do inferno…

Mas que digo? Minos, meu pai, está lá com a urna fatal:

Dizem que tem o destino em suas mãos severas.

Minos julga, no inferno, os fracos seres humanos.

Ah, com que arrepios sua sombra tremerá,

Quando vir a filha diante dele,

Forçada a lhe narrar tantas infâmias,

Algumas ignoradas até no próprio inferno!

Que dirás tu, meu pai, desse espetáculo horrível?

Vejo a urna terrível cair das tuas mãos;

E que procuras pra mim algum suplício novo,

Até descobrires que esse castigo é o teu –

Ser carrasco de teu próprio sangue!”

Sobre o autor: Matheus “Mavericco”, nascido em 1992, Goiânia, gosta de literatura clássica em suas várias acepções, mas em especial daquela forma de arte que consiga contar uma boa história, fruto de uma boa reflexão, numa boa linguagem e com uma boa construção e coesão interna e externa: e que consiga, sendo assim, ser imorredoura até que o coração pare ou atrofie. Não é formado em nada e não está cursando nada; é um vestibulando e um concursando; é um apaixonado; é um leitor.