Quando me ofereci para resenhar Watchmen tinha em mente que acabaria falando mais da adaptação de Zack Snyder do que da Graphic Novel em si. Muitas pessoas correram atrás do relançamento da história concebida por Alan Moore num encadernado com todos os exemplares e nem podemos culpar, a plástica do filme é muito fiel – consegue ser mais atraente do que Sin City, por exemplo, porque muitos acharam a história cool e não ligaram muito para o jogo de contrastes -, mas sua narrativa é totalmente dilacerada. Ok, não posso culpar o diretor por isso, mesmo que quisesse jogar tudo para cima dele, porque, apesar da HQ ter uma narração cinematográfica, basta folhear algumas páginas para ver que tudo segue um padrão de storyboard, mas em sua essência a narrativa é episódica e só daria certo em um seriado com grande orçamento e para televisão fechada – alô HBO! Tamo junto.

A história, lançada em 12 fascículos (ainda usam esse termo ou era somente para atlas nos anos de 1990?) entre 1986 e 1987, abre com o assassinato de Edward Blake, também conhecido como O Comediante, que durante anos trabalhou para o governo como um vigilante mascarado – o que era proibido pela lei Keene para aqueles que não quisessem se registrar. A partir dessa morte inesperada, um ex-companheiro de Blake, Rorschach, passa a investigar e avisar a todos com quem trabalhou, suspeitando que aquilo era uma queima de arquivo. É através das andanças e suspeitas desse personagem que conheceremos um a um os outros que um dia foram vigilantes mascarados. Passado e presente serão apresentados, mesclados e revisitados a cada novo ato. Porém, esses heróis não têm super-poderes, apenas um, Dr. Manhattan, que continua a trabalhar com o governo – não como deixar de ser um herói, pois ele não é mais humano, mas sim um semi-deus que consegue controlar a matéria, ver o futuro como se fosse o presente e transportar-se para distâncias inacreditáveis. Conforme a investigação se desenrola, paralelamente Dr. Manhattan é acusado de causar câncer em pessoas próximas e formalmente acusado pelo governo, o que o faz se isolar em Marte. Há ainda de se citar que essa é uma realidade alternativa, nela Nixon conseguiu acabar com a Guerra do Vietnã dando a vitória aos EUA, claro que com a ajuda de Dr. Manhattan e isso cria um mundo em que algumas evoluções tecnológicas se tornam reais graças a um ser que não poderia ser real – pelo menos hoje ninguém viu um azulão balançando seus documentos pelas ruas.

Como toda boa história de conspiração, traços de paranoia no detetive, pistas falsas e acusações complementam o desenrolar dos vigilantes mascarados. Invertendo os papéis de heróis e anti-heróis, Alan Moore explora o jogo de identidades – todos têm defeitos e qualidades, mas seu comportamento e caráter podem destruir ou construir suas imagens de bons moços. Mesmo que o leitor encontre em alguém para se apoiar na história, não é possível confiar 100% em nenhum deles. Watchmen trata essencialmente de uma distopia onde super-heróis são pessoas comuns e de super eles não têm muita coisa, têm talentos mais bem trabalhados do que as outras pessoas. As ordinárias. Esses vigilantes, porém, carregam defeitos como todos os seus iguais: são egoístas, excêntricos, seus problemas são maiores do que qualquer pessoa, são de carne e osso – e esse é um dos pontos que Moore toca mais, como no caso de um assédio sexual entre colegas. E o único com super-poderes vive em crise existencial, tentando levar a lógica acima de tudo e de todos. Os personagens em si são alegorias da fraqueza humana, e como humanos eles erram, pecam – morte, sexo e traição estão entre os tops – e são vítimas de suas decisões. Nunca acima de ninguém. Simulacros.

É essencial notar que o slogan “Who watches the watchmen?” é encoberto ao longo de toda a história, surgindo apenas depois da conclusão, assim como relógios fazem parte dos quadros sempre mostrando uma minutagem significativa sobre o fim do mundo e a relatividade e imutabilidade do tempo. Uh-oh, não à toa, relógio, em inglês, watch. Signos. Seria irônico não perceber que o primeiro grupo de heróis da HQ era conhecido como Minutemen ou que cada capítulo da história traz em seu começo um minuto que passou dentro do contexto do Doomsday Watch – uma contagem regressiva para o fim do mundo através de uma guerra nuclear. Tudo é uma questão de tempo, desde o primeiro quadro quando o bottom do Comediante está com um risco de sangue, formando um ponteiro. Ele corrói tudo, ele revela o que há de ser revelado ao mundo. Ainda há as citações que encerram cada capítulo: Bob Dylan, a Bíblia, Einstein, Nietzsche. Signos.

Como há diversos personagens, há vozes narrativas distintas dentro da mesma HQ. Em seus flashbacks, em suas histórias particulares e em seus pensamentos (instintos) mais primitivos. E nessas idas e vindas do tempo que o questionamento de Moore sobre a verdadeira essência dos heróis, todos serão destruídos mais cedo ou mais tarde. Signos. Mais do que fantasias ou poderes. Inconsciente coletivo de que tudo pode estar nas mãos de um salvador. Aqui substituímos um herói messiânico (simulacro) para outros incríveis seres que oprimiram aqueles que deveriam salvar. Manipulados por uma guerra ao terror – seria familiar nos dias de hoje? Alegorias.

Watchmen é um romance com personagens tridimensionais, não uma simples Graphic Novel. Os símbolos e signos – gráficos e as anedotas no encerramento de cada capítulo -, o estado de urgência, a tal desconstrução do heroísmo, são todos parte desse grande cosmo criado por Moore e concebido visualmente, em contrastes e simetria, por Gibbons, que arrastam qualquer leitor para ele.