Fiquei um tanto duvidoso quanto às opiniões amplamente favoráveis ao livro A memória de nossas memórias (Great house, no original) quando comecei a lê-lo. A prosa de Krauss demorou um pouco para realmente engrenar e decolar, mas quando o fez, é forçoso admitir que não é à toa que seu nome está inscrito na literatura norte-americana contemporânea com louros.

Nicole Krauss joga o leitor dentro da história sem apresentar personagens e situação de antemão, uma vez que a solução desse pequeno quebra-cabeça formado aos poucos é parte fundamental do processo de leitura.

A história nos é contada através de vários narradores, cada um deles assumindo o palco narrativo em algum momento e relatando sua trajetória e suas impressões. Há, por exemplo, Nadia, uma escritora norte-americana reclusa que lida com um apartamento vazio e uma série crise existencial acerca de seu ofício literário. Há também Arthur Bender, o viúvo de Lotte Berg, escritora cuja trajetória de vida está entrelaçada com eventos estarrecedores. Há também um comerciante de antiguidades, George Weisz, que se valeu de seu tino comercial para escapar dos nazistas através de artimanhas muitíssimo pitorescas e profundamente interessantes.

Essas histórias, por discrepantes que pareçam, estão ligadas por conta de um objeto, na verdade um móvel, uma descomunal escrivaninha negra, rombuda e repleta de gavetas e de mistérios. Para todos esses personagens – e para outros que rondam a história, como o poeta chileno Daniel Vardsky e o jovem Yoav Weisz – a escrivaninha ocupou algum lugar em suas vidas e descortinou sentimentos e emoções que fazem dela um elemento quase místico.

Através de histórias contadas à parte, Nicole Krauss constrói um romance muito bem arquitetado nas suas confluências e cruzamentos. Nadia conhece Daniel Vardsky, de quem ganhou a escrivaninha; Lotte Berg é uma das escritoras preferidas de Daniel; o viúvo de Lotte, Bender, se encontra com Weisz por conta da escrivaninha e os filhos de Weisz se encontram com Nadia em busca da antiguidade que recorre em todas as tramas. O acerto da autora foi não fazer a escrivaninha o protagonista, mas sim o catalisador das histórias, artifício semelhante àquele que o escritor argentino Alan Pauls usa em História do cabelo.

A escrivaninha se reveste de vários sentidos na medida em que é apropriada espiritualmente por seus diferentes proprietários. Para Lotte era uma lembrança dolorosa mantida pela austeridade existencial que ela tomava como princípio; para o antiquário, representa tanto seu trabalho quanto tem reverberações na sua fé religiosa. Para Nadia, ela era uma presença funesta, pois tornava seu apartamento claustrofóbico; para Daniel Vardsky era uma lembrança de um de seus ídolos literários. E assim por diante.

A história de A memória de nossas memórias se sustenta por conta de um mecanismo da própria “natureza” humana: a propriedade que os homens têm de investir sua subjetividade nos objetos, tornando-os dispositivos de memória. Não à toa que as histórias são contadas todas em rememorações: cada personagem mantinha uma relação com a escrivaninha e suas trajetórias existenciais passaram a assumir contornos ontológicos e mnemônicos através desse processo de construção subjetiva. As nervuras da existência se manifestavam nas circunvoluções da madeira e nos recônditos das gavetas.

A escolha do objeto de união das histórias não podia ter sido melhor. A escrivaninha, tanto como um antiguidade – um objeto que remete ao passado por sua própria historicidade – quanto como um móvel onde é realizada a escrita sintetizam significados profundos sobre as relações intrínsecas da memória e da narrativa. Esses significados estão incrustados nas experiências dos personagens, ora atormentados, ora felizes, ora temerosos, ora frustrados. Krauss não poupa detalhes preciosistas sobre a história dos personagens e faz subsistir no pano de fundo uma trama consistente que alude à obstinada busca por sentido em meio a tantas fragmentações e individualidades que as permeiam.

A clima morno do início do livro se dá pelo fato das histórias estarem sendo contadas separadamente, de modo que aquela unidade que as enche de força não seja ainda visível. A espera, no entanto, é recompensadora. O desfecho do livro, cujas amarrações estão nas últimas páginas, é realmente muito bom. Todas as trajetórias parecem fazer sentido, e suas migalhas de expressividade se juntam numa orquestrada congruência regida pela talentosa batuta de Krauss. Por mais que essas narrativas puzzle não sejam as minhas favoritas, tenho que dar o braço a torcer e admitir que A memória de nossas memórias é de fato magistral. Por isso deixo-vos meu conselho: se vocês se pegarem querendo desistir do livro, persistam, pois o final vale a pena.

P.S.: Minha vontade é de escrever mais umas duas ou três resenhas para falar mais sobre as questões presentes no livro. É de fato um ótimo livro para discussões e para rastrear as intersecções e pistas deixadas pela autora.