Por Carla Leonardi (*)

Encontrar o feminismo é libertador. Ou, melhor dizendo, encontrar-se no feminismo é libertador. Mas não é fácil, não é rápido e não é sem dor – e, às vezes, leva uma vida inteira.

Descobri Silvia Federici (filósofa e historiadora ítalo-americana) em 2018, com o burburinho gerado por Calibã e a bruxa. Na Festa do Livro da USP daquele ano, lembro que as caixas de livros repostas no estande eram imediatamente esvaziadas a todo momento. Foi uma loucura – uma loucura das boas. Me rendi às forças capitalistas e fiz como todas as jovens meninas que estavam por ali: comprei o livro e devorei uma cartela de post-its para marcar tudo aquilo que era “interessante demais para ficar sem uma marcação”. Claro que marquei quase o livro inteiro.

A obra trazida ao Brasil pelo coletivo Sycorax e publicada pela Editora Elefante não causou frenesi à toa: a partir de seus profundos estudos, Federici faz uma análise da posição da mulher na sociedade desde o declínio da Idade Média. De forma brilhante, ela evidencia com fatos históricos como o desenvolvimento do capitalismo a partir do cercamento e da privatização de terras comunais mudou completamente o modo de ser, estar, produzir e se reproduzir da mulher dentro das comunidades.

Aqui, vale uma explicação: Federici é marxista. Isso significa que ela parte do materialismo histórico para fazer seus estudos; em linhas gerais, podemos dizer que esse tipo de análise olha para a sociedade atual a partir do contexto histórico e das relações materiais da sociedade humana. Entendemos, então, que a situação atual da mulher é consequência de uma série de fatos do passado, refutando qualquer noção de “moral” ou daquele tipo de pensamento “é assim porque deve ser”. Não deve. Algo, hoje, só é assim ou assado porque certos fatores foram determinantes para isso (veja, “determinantes”, não “deterministas”).

Interessante, não é? Mas igualmente complicado de entender, sobretudo para nós, mortais que não estudamos Marx, acumulação primitiva ou materialismo histórico na faculdade. Ou então não lemos Foucault, evidentemente. Calibã e a bruxa é teoria em cima de teoria, um livrão robusto, de fôlego, que exige repertório, atenção e tempo para uma leitura atenta.

Foi pensando em democratizar ainda mais essas informações e consequentes reflexões que surgiu a proposta do Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Publicado no fim de 2019 pela Boitempo, o livro, de formato menor e com um número bem reduzido de páginas, retoma os temas trabalhados em Calibã, tornando a teoria mais acessível a um número maior de pessoas. Mesmo assim, garanto: a potência continua a mesma, trazendo ainda para o debate questões atuais sobre a violência contra a mulher na América Latina e especialmente em países da África e da Índia, onde a caça às bruxas foi levada da Europa e faz vítimas até hoje.

A sensação que eu tive lendo os dois livros e ouvindo Federici em dois momentos muito especiais de sua passagem pelo Brasil no ano passado (uma no auditório Simón Bolívar, com um time poderosíssimo de mulheres, e outra na FFLCH-USP – ambos com auditórios lotados) foi a de finalmente entender o que estava errado. Sabe quando você tem a impressão de que algo não está certo, mas não sabe o que é? E quando você descobre, sente como se o oftalmologista finalmente acertasse o grau das suas lentes? Foi assim que eu me senti.

As minhas lentes estão – até que enfim – adequadas. Mas eu levei 30 anos para enxergar bem. Agora, alio-me a uma turma incrível para que mulheres e meninas demorem cada vez menos tempo para conseguirem ver o mundo do lado de cá. Soa cafona, eu sei. Mas é absolutamente real.

FICHA TÉCNICA
Livro: Mulheres e a caça às bruxas
Autora: Silvia Federici
Editora: Boitempo
Tradução: Heci Regina Candiani
Páginas: 160


(*) Carla Leonardi é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e graduanda em Letras – Português e Francês na Universidade de São Paulo.