Mariazinha não consegue mais ouvir R.E.M., porque logo nos primeiros acordes de Losing My Religion ela lembra da amiga que morreu e, assim que recebeu a notícia, o clipe passava na MTV. Fulano terminou com beltrana e ela devolveu todas as coisas que ganhou ou guardou durante o relacionamento. Não por não gostar mais, mas porque a lembrança era tão viva que era impossível continuar possuindo tudo aquilo. Creio que muitos ouviram histórias desse tipo, a segunda é a mais comum no cotidiano: jogar coisas fora, guardar num canto escuro, devolver, é tudo muito difícil quando se constrói memórias partilhadas. Alguns traumas são superados e outros, como no primeiro exemplo, são como ferida aberta (Renato Russo feelings).

É um pouco difícil desvencilhar certas sensações e recordações em algo específico como um lugar. Nunca me vi como o tipo que guarda rancor de objetos, músicas e fotos. Claro que com o tempo quero rememorar grande parte do trajeto e me volto às caixas, melodias e filmes com uma saudade à melhor maneira “foi bom enquanto durou”. Lamentar por ter acabado ou arrepender-me não é muito do meu feitio. O que eu mais gosto, no entanto, são as pequenas diferenças que uma lembrança pode trazer. Muitos de nós acreditamos partilhar as mesmas recordações com amigos, parceiros, inimigos e parentes, contudo, como diria Nelson Rodrigues, “Não há nada mais relapso que a memória”.

Um dos exemplos que gosto de recordar são sempre ligados às amizades, como comecei a conversar e interagir com cada um dos meus amigos: o que fazíamos, o que falamos, o lugar, etc. Com certeza meu amigo Danilo Bodra pensa que nossa primeira conversa foi sobre Tarantino. Ledo engano. Começamos a conversar realmente no começo da faculdade quando, não sei porque diabos, eu cantarolava Beds Are Burning, da banda australiana Midnight Oil, e infernizei a vida de todos. Seis meses depois, ironicamente, o primeiro presente que Danilo ganhou de alguém da faculdade foi o álbum com essa música entre as faixas. Talvez em uma epifania ele coloque para ouvir e lembrar dos passeios pelo campus e da minha voz desafinada. Talvez ele se pergunte: “quem teve a brilhante ideia de me dar isso?”. Nunca saberei, a lembrança, quiçá, é somente minha.

A minha memória começou a ficar trapaceira há pouco tempo, pelo menos era o que eu julgava até uma conversa recente com uma ex-namorada. Conversávamos sobre festas de fim de ano e sobre a única que passamos juntos. Era dezembro de 2007 e eu queria que tudo fosse perfeito. Viajamos para o litoral e passaríamos os últimos dias do ano com meu pai e a família da esposa dele. Coincidência ou não, os pais dela, da minha ex, também estariam por perto e não deixaríamos nenhuma família com muito ciúme. Durante a conversa, citei a fatídica noite de queima de fogos quando 2007 era quase 2008, e esse ano caçula era um apanhado de boas promessas até então, quando vimos pessoas serem assaltadas bem a nossa frente, minha irmãzinha não aguentando de sono e todos saindo bem cedo da beira da praia. O resto da noite, eu apaguei. Na minha cabeça tudo acabou na volta ao apartamento. Guardei isso até ela lembrar-me que sentamos na calçada, em frente ao prédio em que estávamos hospedados, e bebemos cidra quente. Ela reclamou que ninguém havia mandado mensagem desejando feliz ano novo e eu, no auge de tentar salvar a noite que eu planejara para ser perfeita, peguei sorrateiramente meu celular e mandei uma mensagem. Remontei essa memória após a conversa.

Não há um modo específico para livrar-se de pensamentos e recordações indesejáveis. Pelo menos ainda não criaram a Lacuna Inc. para isso. Às vezes desmancharão, às vezes impregnarão. Tenho diversos objetos que a olho nu – aquele sem o sentimento de causa – podem parecer simples apegos materiais, mas que um dia servirão para suspiros deitados em uma rede, como um palito de cabelo furtado há 4 anos. Por culpa de pensamentos infortúnios, eu poderia nunca mais ler O Pequeno Príncipe, não assistir mais Donnie Darko e até odiar Noel Rosa. Mas me resguardei e deixei de lado o que soava ruim em outros tempos para hoje em dia ouvir, assistir e ler sem me arrepender de um ato impensável. Como diriam os excelentíssimos Sá & Guarabyra: “É sempre bom ter perto coisas para lembrar”. Eu lembro.