Durante a última edição da Semana Literária do SESC-PR, Marcelino Freire ministrou uma oficina relâmpago de narrativas breves. O Gui, de que falo tanto, 1 já tinha participado de um oficina dele, de microcontos, na época em que nos conhecemos e me recomendou a experiência.

O primeiro exercício que Marcelino nos passou foi escrever um microconto, ali mesmo na sala. Logo depois de nos apresentarmos – “Arthur, mas também me chamam de Tuca; também sou de Pernambuco; sim, nos vimos lá na Flip, na festa da Companhia” – ele nos dava uma palavra, que podia ser título, tema ou uma das palavras usadas na nossa narrativa. Ele olhou bem pra mim e disse: “ingratidão”.

O termo já constava numa lista prévia que ele trouxe consigo, 2 mas não tinha como eu saber disso no momento. Pareceu-me que aquela era a minha palavra, uma espécie de acusação, como se o escritor soubesse exatamente em qual ferida enfiar a ponta de um compasso.

Ingratidão.

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Um ano antes, eu estava na fila da bilheteria do Centre Pompidou. Como o tempo estava meio chuvoso, a Bárbara me recomendou visitar um museu naquele dia. Pelo horário, ela sugeriu aquela construção, que parece feita de Lego, depois de me indicar como chegar até lá de metrô. Havia uma exposição de Matisse, concorridíssima, que ficaria excepcionalmente aberta até às 23h no dia – ingresso vendido à parte.

A fila imensa, o meu desinteresse por Matisse e os euros a mais já tinham me convencido de comprar o ingresso mais simples – não estava nos meus planos mentir que era jovem e europeu a fim de não pagar entrada –, quando minha aversão à mentira foi recompensada: a moça que me atendeu também era brasileira e me deu o bilhete completo, com exposição especial e tudo. Recomendou-me que visse antes as exposições permanentes, que fechavam no horário normal, antes de conferir a temporária, que estaria menos cheia mais tarde. Agradecido, obedeci.

Foi lá que vi pela primeira vez um Braque, um Picasso, um Pollock, um Kandinsky e um Miró ao vivo. Também pude conferir uma exposição em homenagem a Art Spiegelman, autor de Maus. Acho que nunca tinha visto paredes tão coloridas.

Mas foi na exposição de Matisse, aquela de que eu não fazia muita questão, que senti cócegas no cérebro. Aquela sensação de que sua mente acabou de se expandir um tantinho. Tive de me sentar a fim de dar cabimento a tanto pensamento sendo pensado junto. Pensamento de como era estúpido menosprezar Matisse, sem conhecê-lo de fato: a exposição reunia pares e séries de pinturas e gravuras dele com o mesmo tema, para que pudéssemos perceber a infinidade de técnicas utilizadas pelo artista. Pensamento de como era ofensivo algo que lera na internet, alguém indignado com a quantidade de gente pobre que passara a ter condições de fazer viagens ao exterior, manchando a reputação dos turistas brasileiros; eu também causaria repulsa a quem escreve um texto desses, porque a raiva que este continha não era direcionada à “má educação” ou à falta de respeito, mas às classes sociais que não sabiam “o seu devido lugar”.

De pensamento em pensamento, me dei conta de que estar em Paris não tinha sido apenas fruto de um esforço solitário 3 e de golpes ocasionais de sorte 4 : nessa viagem também tinha uma baita mãozinha dos meus pais. Ainda que nunca tenha me queixado por não terem condições de me pagarem uma viagem dessas, foi somente em Paris que compreendi que, tampouco, eles me impediram: nunca tive que ajudar no sustento da casa, nunca me faltou nada.

Sabe aquelas coisas mínimas do cotidiano, pelas quais somos gratos de um modo meio que automático, com raras exceções 5 ? Todas essas pequenas gratidões se acumularam em uma gratidão imensa, que me deixou imóvel por um bom tempo, num banco situado entre oito quadros enormes de Matisse.

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Ah, antes que eu esqueça, o microconto:

 

Ingratidão
Chateada por ter demorado tanto para conhecer Paris – painho não tinha condições –, ela percebe que só conseguiu aquela grana por não precisar sustentar ninguém.

 

Em nenhum momento eu disse que a experiência havia resultado em um microconto bom. Mas, pelo menos, dá pra ver que, sempre que possível, eu gosto de usar uma narradora ou protagonista do sexo feminino. O que também não é lá muito interessante.

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Acredito firmemente que todos temos mais pais e mães do que consta na certidão de nascimento, assim como a família de verdade vai muito além dos laços biológicos – tem gente que se une a você pelo sangue e pelo afeto e tem gente que é só pelo afeto. todos juntos, numa família enorme. Eu tenho tios-quase-pais, amigos-quase-pais. Retomarei o assunto mais adiante.

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longe

Há algum tempo tenho cultivado certa preguiça de livros escritos por homens – o que não poderia ser mais genérico. Talvez isto seja algo construído desde o desafio que propus ano passado. Ou desde que publicaram um infográfico resumindo as pesquisas de uma professora sobre literatura contemporânea brasileira. Ou desde que percebi que fiquei irritado demais com uns trocinhos bobos na novela de um escritor latino-americano.

Se li alguns escritores masculinos nos últimos meses, foi porque eles fugiram da censura por algum motivo específico: um autor favorito a ser entrevistado (Reprodução, de Bernardo Carvalho); uma capa muito boa de uma editora de que gosto (Quatro soldados, de Samir Machado de Machado); uma leve confusão de gênero – jurava que o nome do autor era feminino (Ruínas do tempo, de Jess Walter); uma edição definitiva de um livro há muito recomendado por uma amiga (Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato); a coincidência do tal escritor ser o Antonio Prata, que conquistou o direito de driblar qualquer lista de prioridades e qualquer critério de censura (Nu, de botas me fez feliz).

Longe da árvore – pais, filhos e a busca da identidade é um livro (1) grossão, 6 escrito por (2) um cara, (3) de não ficção: três motivos para não pegá-lo, nas minhas CNTP. 7 Mas eu o peguei. Podia justificar minha escolha dizendo que a capista dele era a Elisa Von Randow, pois eu sempre findo lendo os livros que têm capa dela. Mas não. Quando passei por São Paulo, vi uns dois escritores de que gosto muito recomendando a leitura. Pouco depois, outro escritor comentou o mesmo livro em uma coluna. É: a curiosidade bateu forte.

Li o primeiro capítulo. Para descrever a sensação de lê-lo, repito expressões já utilizadas acima: “senti cócegas no cérebro”; “Aquela sensação de que sua mente acabou de se expandir um tantinho” etc.. Desde o comecinho, Andrew Solomon escreve de uma forma que será uma constante no decorrer do capítulo: 8

Não existe isso que chamam de reprodução. Quando duas pessoas decidem ter um bebê, elas se envolvem em um ato de “produção”, e o uso generalizado da palavra “reprodução” para essa atividade, com a implicação de que duas pessoas estão quase se trançando juntas, é nas melhor das hipóteses um eufemismo para confortar os futuros pais antes que se metam em algo que não podem controlar. Nas fantasias subconscientes que fazem a concepção parecer tão sedutora, muitas vezes é nós mesmos a que gostaríamos de ver viver para sempre, e não alguém com uma personalidade própria. […] devemos amá-los por si mesmos, e não pelo melhor de nós mesmos neles, e isso é muito mais difícil de fazer. Amar nossos próprios filhos é um exercício para a imaginação.

Parece que o autor se diverte em apresentar uma pré-concepção corriqueira, mostrar todos os seus pontos cegos até que quase a nega totalmente, só para depois apontar o quanto ela tem de verdadeira, ainda que, como visto, não seja a única verdade. E o que não nos falta são pontos cegos no que tange à relação entre pais e filhos, muito mais claros quando estes “apresentam necessidades desconhecidas”, filhos “cuja característica definidora aniquila a fantasia da imortalidade”. Na obra, ainda que tenha entrevistado por duas décadas muitas outras categorias de filhos especiais, Solomon dedica capítulos inteiros a surdos, anões, portadores de síndrome de Down, autistas, esquizofrênicos, deficientes, prodígios, filhos concebidos por estupro, criminosos e transgêneros, pensando nessas características como identidades. A complexidade é tamanha que vale citar o trecho a seguir:

Os juízos negativos não se limitam às pessoas que se consideram dentro da corrente principal da sociedade. Quase todas as pessoas que entrevistei desgostaram em algum grau dos capítulos deste livro que não fossem o delas próprias. Surdos não queriam ser comparados a pessoas com esquizofrenia; alguns pais de esquizofrênicos ficaram assustados com os anões; criminosos não puderam suportar a ideia de que tinham alguma coisa em comum com transexuais. Prodígios e suas famílias se opuseram a estar em um livro com os gravemente deficientes, e alguns filhos de estupro acharam que sua luta emocional foi banalizada quando foram comparados aos ativistas gays. Pessoas com autismo muitas vezes apontaram que a síndrome de Down acarretava uma inteligência muito menor que a delas.
A compulsão para construir essas hierarquias persiste mesmo entre as pessoas que foram prejudicadas por elas.

Antes que pareça que estou falando de um autor que gosta de apenas pôr o dedo na ferida dos outros indiscriminadamente, importa ressaltar que os capítulos inicial e final (intitulados “Filho” e “Pai”, respectivamente) de Longe da árvore partem da experiência pessoal de Solomon. O último capítulo se inicia com a seguinte frase: “Comecei a escrever este livro para perdoar meus pais e terminei-o tornando-me pai.”. No primeiro, vemos o amor de uma mãe que luta contra o sistema educacional para que seu filho disléxico tenha uma educação de qualidade – mas que nega o balão rosa ao filho, lembrando-lhe que sua cor preferida é o azul.

Sei que vou demorar um bom tempo para concluir a leitura desse livro – 1056 páginas não são bolinho. Mas também sei que o primeiro capítulo 9 do livro é melhor do que muitos outros, inteiros, que li este ano. Desde a dedicatória, ele é lindo. 10 E se o cito assim, mesmo faltando um montão de páginas para finalizar a leitura, é porque muita gente tem me perguntado se ele vale a pena, desde que postei uma foto dele no Instagram. Eu respondo dizendo que essa coisa de ler uma frase – “É uma surpresa para mim que eu goste de mim mesmo; (…)” – e saber exatamente do que o cara está falando não tem preço. 11

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O amor dos pais vai além dos laços biológicos. Os pais adotivos estão aí para contar essa história. No livro de Solomon, há um capítulo inteiro para filhos concebidos em estupros: metade do material genético que os produziu uma lembrança constante de um trauma, de uma agressão profunda. E há tios-quase-pais e amigos-quase-pais, como os que me acolheram em viagens recentes. Sejamos cronológicos, docemente cronológicos.

Eu conheci o Giovane num churrasco. Nunca o tinha visto, nunca tinha falado com ele, mas, no fim das contas, foi a pessoa com quem mais conversei naquela tarde. E a amizade só cresceu desde então. Tanto que, mais de um ano depois, foi na casa dele em que procurei abrigo depois um período complicado aqui em Curitiba. Precisava esquecer um monte de coisa e viajei com o pensamento de que seria a segunda Flip do ano.

Mas não. Ele e a namorada, Vanessa, 12 me deixaram descansar. Eu nem tinha percebido que precisava tanto disso, mas creio que há algo de sexto-sentido no cuidado dos pais – mesmo no caso de amigos-quase-pais. Passeamos bastante. Fomos num café e numa sorveteria deliciosa e numa cantina italiana – mangia che te fa bene. E, no penúltimo dia, o charleston deixou de ser uma metáfora de segunda mão para ser uma referência que eu poderia fazer sem intermediários. Não apenas aprendi uns passinhos dele, mas também conheci o lindy hop. E fiquei embasbacado com a desenvoltura de certa menina nessa dança – houve um momento em que ninguém a chamou para ser seu par e ela dançou uma música inteira sozinha, só nos passos de charleston. E eu podia fazer aquilo também. E eu arrisquei fazer aquilo também – rapidinho, mas arrisquei.

E “[…] daí pra frente é um pulo.”

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Mais recentemente, visitei os tios-quase-pais de Recife, Evanderly e Fernando, já citados por mim outras vezes. Ela, bastante preocupada se não conseguiria me dar atenção com a quantidade de compromissos daqueles dias – que incluíam duas viagens. Eu, meio cabreiro por ser minha primeira vez na cidade sem os meus pais – muito mais carismáticos e divertidos do que eu –, mas feliz porque passaria um tempo longe do frio.

Os dias não poderiam ser melhores. Teve praia e teve leitura na praia. Teve Fliporto – essa sim, uma segunda Flip no ano – inclusive reencontrando gente que tinha visto em Paraty. Teve reencontro com a infância: encontrei um conhecido e um dos amigos deste era um cara que eu não via há pelo menos 14 anos, um dos meus melhores 13 amigos na escola, o menino que gostava da mesma menina que eu – uma noite muito divertida, por muitas razões. Teve um dia inteiro passado em Pau Amarelo, visitando uma tia – esta, sim, biológica – e meus primos, com direito a pizza, Thor 2 dublado e camarão ao coco. Teve a visão do que seria “tubo” pouco convencional, na praia, agarrado aos arrecifes. Teve bate-e-volta em Porto de Galinhas. Teve maratona de The Walking Dead em alta definição, com direito a Meu malvado favorito 2 na sequência. Teve troca de presentes com uma amiga antiga: ela me deu um milk-shake de Ovomaltine e eu dei Noites de alface, de Vanessa Barbara, para ela. Teve vida e teve amor.

Por tudo, e a todos, eu sou grato.

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Eu não sei se sou a pessoa retratada no parágrafo final da última coluna do Pips – nem se, em caso positivo, a frase citada é minha mesmo. Mas ela me lembra de uma canção (linda, linda) que me veio à mente enquanto andava de metrô por São Paulo, acompanhado por um monte de velhos amigos e novos conhecidos: “Home”, de Edward Shape com The Magnetic Zeros. Um dos versos do refrão pode ser traduzido livremente como “Lar é qualquer lugar em que eu esteja com você(s)”. E é bem capaz de que eu tenha dito, no momento, algo parecido com a frase citada: “Meu lugar predileto são todos vocês”. Este, inclusive, poderia ter sido o título da coluna de hoje.

Como o Pips conseguiu a citação – ele não estava presente naquela hora, lembro-me bem – é um mistério desses bonitos que dá medo de solucionar.

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Três romances familiares.

* Laços de sangue, de Michael Cunningham

* Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

* Onze, de Bernardo Carvalho

  1. Muita gente esperava que a coluna “Tudo o que você sempre quis saber sobre o Gui* (*Mas tinha medo de perguntar)” revelasse algumas fofocas sobre ele. Não foi dessa vez.
  2. Eu fui o 17º a me apresentar e aquela era a 17ª palavra da lista.
  3. Toda grana que consegui juntar durante o ano anterior foi transformada em euros e passagens aéreas internacionais.
  4. Como a oferta da Bárbara em me hospedar por lá, a chegada do passaporte três dias antes da viagem e a aprovação na seleção do mestrado, que me fez largar o emprego por incompatibilidade de horários – eu poderia incluir o último item na lista do “esforço solitário”, mas ainda acredito que foi mais sorte que mérito.
  5. “Brigado pela carona, pai! Hoje ia chegar atrasado MESMO!”; “Você se superou dessa vez, mãe. Acho que esse foi o feijão mais delicioso DA VIDA!”.
  6. Tanto que, pela primeira vez, vi que seria um bom negócio comprar a versão em e-book: o livro fica pela metade do preço e você consegue lê-lo em qualquer lugar, não apenas em cima da cama, todo torto.
  7. Condições normais de temperatura e pressão.
  8. O que ele fala sobre “reprodução” claramente não tinha saído da minha cabeça quando redigi as perguntas que fiz ao Bernardo Carvalho.
  9. Aliás, um trecho dele está disponível no site da Companhia das Letras.
  10. “Para John, cuja diferença me faria desistir de bom grado de toda a mesmice do mundo.”
  11. Não sou besta a ponto de esquecer que há, sim, um preço: 80 pilas é uma fortuna para muitos. A esses, desejo que suas cidades possuam boas livrarias e que eles aprendam a ser desinibidos e a lerem nelas, como preconiza Vanessa Barbara – tomando todo o cuidado para não estragar o livro, logicamente. Ler o primeiro capítulo (p. 11-64) é algo possível em uma ou duas sentadas/idas à livraria. Realmente será uma experiência que não terá preço. Recomendo: li muitos livros inteiros assim – depois, comprei os de que mais gostei, quando minha situação financeira me permitiu. Fica a dica.
  12. Que se ofereceu para sapatear de tamancas em cima das costas de quem tinha me feito mal.
  13. Hmm, vamos ser mais exatos: poucos.