“Nunca te li, sempre te amei” é uma frase que define minha relação com alguns escritores. Antes de ler Kafka à beira-mar e Minha querida Sputnik, por exemplo, era assim que me relacionava com a literatura de Haruki Murakami. Essa predisposição a gostar de alguns autores persiste: entre os muitos nomes, estão os de Philip K. Dick, Leonard Cohen, Thomas Pynchon, Allan Hollinghurst e Marcel Proust (sim, caro leitor, não vou bancar o personagem de Bonsai e fingir que já li Em busca do tempo perdido).

O autor mais recente que risquei dessa lista foi Ian McEwan. Não foi agora o meu primeiro contato com sua obra. Já havia visto o filme Desejo e reparação, de que gostei muito, e lido alguns artigos sobre ele, incluindo seu perfil-entrevista traduzido no primeiro volume de As entrevistas da Paris Review (lançado pela Companhia das Letras). Além disso, lembro-me de ter adorado cada segundo de leitura de Reparação até a 76ª página, parte em que tive de abandonar a obra para finalmente me dedicar à escrita de uma monografia.

Contudo, o primeiro romance dele que li na íntegra foi Amsterdam, recentemente publicado pela Companhia das Letras em tradução de Jorio Dauster, o mesmo que já tinha traduzido outros três volumes do autor para a editora – O jardim de cimento, Solar e Amor sem fim. Ainda que a tradução seja recente, a obra é uma das primeiras da terceira e nova fase do autor (segundo Adam Begley, em introdução à entrevista da Paris Review, que pode ser lida, em inglês, aqui) e foi lançada em 1998. Já havia, inclusive, sido publicado pela Rocco, com tradução de Paulo Reis, numa edição hoje esgotada. A partir deste título, McEwan passou de Sr. McAbro (apelido que lhe foi dado pela imprensa por causa de seus temas) e apenas uma promessa literária para um escritor conceituado e ganhador do Booker Prize.

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O romance se inicia no evento social (sim, o nome é apropriado) da cremação de Molly Lane. O leitor conhece alguns personagens do círculo da falecida: o marido, que a acompanhou cuidadosamente nos momentos finais, e três dos amantes dela – ainda que só seja revelado posteriormente que um deles também esteve envolvido com Molly. Os dois que são imediatamente apresentados como tal são homens relativamente bem-sucedidos, mas em crise: o jornalista Vernon Halliday, editor do Judge, um jornal cuja decadência de vendas ele conseguiu conter, mas ainda não reverter; e o compositor Clive Linley, considerado um gênio e contratado para escrever a “sinfonia do milênio”, que está numa fase de bloqueio criativo e de dúvidas sobre seu talento (suas composições são, aparentemente, adoradas por mulherzinhas que tocam piano por diversão).

A morte de Molly e o orgulho próprio de ambos dão ensejo ao pacto que é um dos principais temas do romance. Mas, antes, vejamos como o autor apresenta a progressiva desumanização de Molly, que se espelha na mente e no físico dos dois.

Molly:

“Coitada da Molly. Começou com um formigamento no braço ao erguê-lo na porta do Dorchester Grill para fazer parar um táxi: a sensação jamais foi embora. Poucas semanas depois, tartamudeava ao dar nome às coisas. […] A velocidade de sua queda na loucura e na dor havia se tornado motivo de mexericos generalizados: a perda de controle das funções fisiológicas e, com isso, de todo o senso de humor, seguida do mergulho progressivo na confusão mental intercalado por episódios de violência infrutífera e gritos abafados.” (p. 11-12)

Clive:

“As ansiedades sobre o trabalho se transmudaram no metal menos nobre dos medos noturnos banais: doença e morte, abstrações que logo encontraram um foco na sensação que ainda persistia na mão esquerda. Estava fria, inflexível e formigante, como se houvesse ficado sentado em cima dela por meia hora. Massageou-a com a mão direita, a aqueceu contra o estômago. Não foi essa a sensação que Molly teve ao chamar o táxi na porta do Dorchester Grill?” (p. 31-32)

Vernon:

“Lá estava ao acordar de manhã, contínua e indefinível, não alguma coisa fria, não opressiva, não estonteante, embora sendo um pouco de tudo aquilo. Talvez a palavra fosse “morto”. Seu hemisfério direito tinha morrido. Ele conhecia tanta gente que havia morrido que, naquele estado de dissociação, era capaz de contemplar seu próprio fim como algo banal – uma certa agitação em torno no enterro ou da cremação, algumas manifestações de pesar, e logo depois tudo se acalmando à medida que a vida seguia seu curso.” (p. 39-40)

Temendo que suas vidas terminem do mesmo jeito, eles fazem um pacto de eutanásia. Nenhum dos dois quer “morrer assim, sem estar consciente de nada, como um animal.”

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Eu já estava ciente do acordo entre os cavalheiros antes de ler o romance e, portanto, já esperava algum questionamento ético e moral sobre a questão. Não tinha noção, contudo, da quantidade de dilemas de semelhante calibre que há na obra – ainda mais se levarmos em consideração seu pequeno número de páginas. Privacidade versus Política. Arte versus Dever cívico. Vida Biológica versus Vida intelectual. Tudo isso nas poucas 184 páginas de um romance que considerei bem amarrado e bem escrito.

(Um pequeno parêntese: fiquei particularmente fascinado com as frases de abertura de cada uma das quatro partes. Para dar um exemplo, cito as duas primeiras do livro, que, creio, ditam o tom do romance inteiro:

Do lado de fora da capela do crematório, dois ex-amantes de Molly Lane aguardavam dando as costas para a fria aragem de fevereiro. Tudo havia sido dito antes, mas disseram outra vez.

Temos ambiente, personagens, mote da ação, leve reflexão da banalidade das coisas e até uma abertura para a tão apreciada interpretação metalinguística (em que se costuma dizer “afinal, toda a literatura fala sobre si própria”) com a segunda frase. Minha favorita pessoal, penso, é a primeira frase da segunda parte: “Durante uma incomum calmaria no meio da manhã, Vernon Halliday voltou a pensar que talvez não existisse.” – há algo de Kafka nela.)

Finalmente, Amsterdam, além de oferecer ao leitor algo sobre o que ficar matutando e de apresentar parágrafos e mais parágrafos daquilo que considero uma escrita notável e fluida, também é um daqueles livros que acertam no bom e velho suspense. Mas isso deixo para você descobrir na leitura: um comentário infeliz pode tirar muito da graça de ser enredado pela prosa de Ian McAbro, digo, McEwan.