Acompanhando a carreira de José Padilha de longe, mas sem perdê-lo de vista, lia notícias sobre sua frustrante empreitada americana na gravação do reboot de RoboCop, projeto da MGM com orçamento estimado em US$ 100 milhões que desencantou o diretor ao mostrar as insuperáveis amarras da indústria hollywoodiana.

Qual a minha surpresa quando vejo entre as estreias de um cinema de arte carioca o documentário Segredos da Tribo, com sua assinatura e cujo trailer nem ao menos vi ser exibido nas semanas anteriores. Estudante de Antropologia, comprei o ingresso e cai diante de um dos episódios mais nefastos, desagradáveis e possivelmente criminosas da história científica, que diz respeito à polêmica em torno da pesquisa etnográfica realizada por antropólogos europeus e americanos com a tribo ianomâmi de Orinoco.

Antropólogos, linguistas e outros cientistas financiados pela Comissão de Energia Atômica americana chegaram por volta de 1964 na Amazônia venezuelana, fronteiriça ao Brasil, para estudar aquela que seria a única tribo intocada remanescente no mundo, os ianomâmis – renomeada por Napoleon Chagnon, um dos líderes da expedição, para yanomamô –, que mantinham rituais e estilo de vida de dez mil anos atrás.

Passados quase cinquenta anos da empreitada, todos os envolvidos mantêm sólida reputação acadêmica: Napoleon é considerado um dos mais importantes nomes de sua área e seu livro “Yanomamo: The Fierce People” está na bibliografia fundamental da escola antropológica americana. Por trás do sucesso e da boa ciência, porém, está o lado negro da Antropologia, e o filme de Padilha joga o espectador em uma DR científica sem fim, a maior que já vi em tela grande.

Outrora parceiros de expedição, Napoleon e Kenneth Good  trocam graves acusações na tela, enquanto outros acadêmicos e especialistas entram em cena, ora tomando partido de um ou de outro, ora colocando mais polêmica no debate. Revisitando a expedição científica e ouvindo índios daquele período, o que se apresenta é uma dominação do ‘homem branco’ tão ou mais brutal do que a cometida pelos ferozes colonizadores. Os antropólogos são acusados de manipulação de dados, incitação à pederastia, abuso sexual e até genocídio, ao disseminarem o sarampo para fins de análise. Até Claude Lévi-Strauss, o renomado antropólogo francês, é colocado na fogueira por ter sido o tutor do linguista Jacques Lizot, acusado de abusar de inúmeras crianças indígenas e de fazer escambo com os adultos, trocando quinquilharias por sexo.

O filme mostra uma sujeira que chega perto do limite do suportável, mas impossível mesmo é ficar do lado de algum dos debatedores. De um lado do imbróglio temos o evidentemente egocêntrico Chagnon, que chega a se comparar ao Galileu ameaçado à fogueira pela Santa Inquisição. Do outro temos um seboso e pouco confiável Kenneth Good, que não importa o que diga, tem contra si o fato de ter casado com uma ianomâmi de treze anos de idade. Entre eles, o jornalista Patrick Tierney, autor de “Darkness in El Dorado”, base para o documentário, onde compila todas as acusações, ainda que muitas delas já refutadas, mas que por vezes parece apenas um sensacionalista.

Chagnon com os 'yanomamos'
Chagnon com os ‘yanomamos’

O mal estar é constante e indescritível, ainda assim o filme vale por trazer à tona um episódio que precisa ser mais esmiuçado. O que resta como grande indignação é que nenhum desses possíveis criminosos transvestidos de cientistas foi investigado. Jacques Lizot se recusou a dar entrevista, mas tampouco parece ter sido inquirido judicialmente, muito embora os depoimentos contra ele formem um conjunto coeso e chocante.

Curioso notar que, embora realizado em 2010, o documentário tenha saído no Brasil na mesma semana em que uma reportagem da revista Veja (ed. 2311) apresentou Chagnon como “o mais famoso antropólogo vivo” –, além de divulgar seu livro de memórias “Noble Savages: My Life Among Two Dangerous Tribes—the Yanomamö and the Anthropologists”, refutar algumas acusações de “Darkness in El Dorado” e, por fim, reverenciar sua recente eleição a National Academy of Sciences (NAS).

Em seu final, Segredos da Tribo parece pender à comiseração de Chagnon, que  tenta vestir a fantasia de velhinho injustiçado, atacado por todos os lados por causa do seu sucesso. Ele até veste a máscara de depressivo, vagando pelo campo com seu cachorro – mas não se engane, a carabina que carrega na outra mão revela muito de sua personalidade.

O filme então termina com uma conferência de antropólogos americanos em homenagem a Chagnon, enaltecendo o cientista e varrendo para debaixo do tapete o monstro megalomaníaco. O que não dá para esquecer é o povo indígena subjudado, que continua na pauta de nossos tempos tão modernos.