No último Festival de Cannes, Alain Resnais, um dos nomes mais respeitados do Cinema francês, com 90 anos de idade nos apresentou Vocês Ainda Não Viram Nada!, que não apenas um filme, é também uma farsa.

Os primeiros minutos da trama são dedicados a telefonas que informam, de maneira quase robótica e com frases ensaiadas, aos atores a morte do dramaturgo Antoine d’Anthac (Denis Podalydès). Com exceção de Denis e de Andrzej Seweryn, o diligente funcionário que faz as ligações, todos os outros protagonistas interpretam a si mesmos.

Eles são Mathieu Almaric e Anne Consigny (de O Escafandro e a Borboleta), Michel Piccoli (Habemus Papam), Pierre Arditi (Amores Parisienses), Sabine Azéma (Ervas Daninhas), Hippolyte Girardot (Paris, te amo) e um punhado mais, de maior ou menor importância e que quase sempre já realizou algum trabalho com o velho Resnais.

Esse começo pouco convencional e surpreendente, esperado já pelo trailer nonsense e nem um pouco relevador, é um convite que Resnais faz ao espectador a uma brincadeira, e é aí que percebemos que Vocês Ainda… será uma grande farsa de mise en scène.

O pano de fundo da história acompanha esses atores que são convidados à mansão do falecido escritor para decidirem se autorizam uma nova montagem de Eurydice, sua peça mais bem sucedida, em que cada um deles já desempenhou um papel. Para isso, eles terão de assistir num telão a uma apresentação teste de uma jovem trupe que pretende remontar a obra.

Esse fio de trama desenrola-se para as mais diversas possibilidades, transformando atores em espectadores (e assim fazendo de nós, espectadores desses espectadores), enquanto o grupo de jovens encena para os atores e para nós uma versão moderna de Eurydice. Assim, o roteiro de Resnais e Laurent Herbiet, baseado nas peças Eurydice e Cher Antoine ou l’amour raté, de Jean Anouilh, mergulha mais fundo e bagunça papeis entre aqueles que assistem e os que atuam.

Voces Ainda Não Viram Nada!
Às beiras do centenário, Resnais (à direita) conduz vigorosamente seus atores.

Mas o vigoroso Resnais vai ainda além: ao longo da exibição da nova montagem, os personagens de Eurydice como que despertam dentro dos atores e eles começam uma reincenação que faz do filme um teatro vivo. O diretor, contudo, é inteligente ao utilizar-se da tecnologia possível somente no Cinema, como o chroma key e o iris-in, para fazer variações das cenas e recortar o texto de acordo com sua vontade. É inegável, porém, que os efeitos escolhidos já são ultrapassados e talvez isso seja uma brincadeira do cineasta com sua idade, bem como quando decide ceifar a obra com títulos que aparecem sobre um fundo negro, efeito comum nos jurássicos filmes mudos e sem cores.

Sim, Vocês Ainda Não Viram Nada! é um filme confuso, adoravelmente confuso, cheio de referências e metáforas e piadas e símbolos não completamente compreensíveis – como os motivos egípcios que abrem o filme e de onde salta o título, junto a badaladas de um gongo. Logo percebemos que aqueles atores, alguns que nos são tão familiares, não estão em cena efetivamente como si mesmos, mas antes constroem representações de si, fazendo um jogo intenso entre persona, personagem e pessoa – e todos conseguem desempenhar muito bem suas funções.

Nessa grande brincadeira de Resnais há espaço para cutucadas, críticas e filosofias de vida. O roteiro, por si só, é uma ferramenta que desnuda a ficção dramática ao menos tempo que revela uma falsidade escondida sob a farsa, tal qual um mascarado que, forçado a desmascarar-se, revela uma outra máscara por baixo.

Além disso, o texto de Resnais ainda encontra espaço para discorrer sobre a morte, que em Eurydice é representada pelo sempre excelente e misterioso Mathieu Almaric e encarada como uma boa amiga. Essa trama tão simbólica, inspirada num antigo mito grego de Orpheu, que vai a Hades recuperar seu amor morto, serve ainda para o cineasta referir-se ao seu passado e levar o espectador mais atento por essa viagem, como, por exemplo, no delicado detalhe que é encontrar o pôster de Hiroshima, mon amour, clássico filme-poesia que Resnais realizou em 1959, num canto do cenário digital da estação de trem.

Resnais então encerra sua brincadeira louca, que infelizmente se estende em demasia, provocando um terceiro e quarto atos cansativos para o espectador e cheio de passagens desnecessárias, com a versão de Frank Sinatra para It Was a Very Good Year, belíssima canção de Eric Drake sobre a passagem do tempo e a nostalgia.

Bom saber que esse cineasta tão cheio de vida, criatividade, tão aberto ao humor, tão interessado no mistério da existência, embora já com noventa anos, fez desse seu mais recente projeto uma brincadeira para atores e personagens, para o público e até mesmo para o autor do Eurydice original, criando o seu próprio Jean Anouilh, falecido há quase trinta anos, como o Antoine de Denis Podalydès, da Comédia Francesa.

Para todo esse feito artístico, que na última meia dúzia de parágrafos eu tentei resumir sem me entregar completamente ao fanatismo e admiração, pode ser  resumido em uma palavra: vigor. É o vigor que move o trabalho de Resnais, que prova que essa qualidade não está necessariamente relacionada a idade, e assistindo a Vocês Ainda Não Viram Nada!, saímos com a impressão de que Resnais tem fôlego para, pelo menos, mais cinquenta anos de bom Cinema.