por Marina Araújo

NOVA YORK – O PEN World Voices Festival of International Literature iniciou na noite de segunda-feira no East Village. O Festival, que dura até 5 de maio, é promovido pelo PEN American Center, com sede em Nova York. A maioria  dos eventos do festival acontecerá em Downtown Manhattan, em uma boa mistura nova-iorquina do prestigioso universo acadêmico, com eventos sediados na New York University e New School of Social Research, com o charmoso ambiente de bares e drinks sem fim da região. Os painéis sobre obsessões típicas de escritores foram estrategicamente colocados no Chez Andre, bar do hotel The Standard. Nada mais apropriado que os eventos que disponibilizem drinks discutam as peculiaridades e ansiedades do ato da escrita, que vão do hábito de fumar (Lewis Laphan) e dormir (Andrew Solomon) às ideias fixas de “tempo” (Joy Harjo) e “verdade” (Naomi Wolf).

Certamente um dos trunfos do centro é promover a literatura, e melhor ainda, festejar a literatura, esta nobre tarefa que realizam com maestria. Em Nova York, há uma concentração sem igual de escritores; a pergunta padrão de uma conversa preliminar, para o desespero dos genuinamente não-escritores, é  “você escreve ficção ou não ficção?”. Mais confuso ainda, para aqueles à margem do panteão, é quando ela é feita em uma festa entre doses de tequila e fotografias com a editora glamourosa da nova revista literária da cidade.

As festas disputadas ajudam a dar suporte às consistentes ações políticas do centro. Estas giram ao redor da defesa da liberdade de expressão e proteção a escritores, jornalistas e intelectuais censurados e presos em diversos países, além de promover a controversa luta contra a tortura e infrações dos direitos humanos dentro dos EUA pós-11 de setembro, e conta com iluminados apoiadores e membros como Paul Auster e Don Delillo.

O festival nasceu em 2005 no acalorado momento em que George W. Bush se reelegia e em que a Guerra no Iraque tornava-se um pesadelo para boa parte dos americanos. E tomou sede na cidade em que os atentados de 11 de setembro eram, e ainda são, um trauma confusamente intelectualizado e pouco absorvido pelos moradores, com suas próprias tragédias pessoais.

A noite de abertura foi uma celebração da cooperação internacional e diálogo cultural, que se tornou urgente como defesa à crescente intolerância racial no país. As leituras de escritores como Earl Lovelace (Trinidad e Tobago), Jamaica Kincaid (Antígua) e Ignoni Barret (Nigéria) marcaram que o ponto era mesmo a “diversidade cultural”, e que o Centro está atento às margens.

Salman Rushdie, escritor britânico que fundou o festival durante sua presidência no Centro, deu início às atividades. Rushdie tornou-se conhecido mundialmente pela fatwa do aiatolá Komeohini em 1988, e que sofreu, por anos, perseguição política e religiosa, com ameaças de morte por parte do mundo islâmico pela publicação de seu livro Os versos satânicos. Rushdie ressaltou o posicionamento político do PEN, que tenta também manter o foco na denúncia de crimes de tortura e infrações aos direitos humanos dentro dos EUA, potencializada pela “guerra ao terror”. A nota explicativa, que normalmente ecoa quando uma linha de pensamento opõe EUA e democracia foi logo entregue, traçando o limite da autocrítica: as infrações são “expressivamente contra a constituição americana”.

As leituras trouxeram trabalhos de ficção sobre a tensão inerente entre literatura e política. A realidade histórica de onde vinham, no entanto, deixou pouco espaço para a sutileza e complexa ambiguidade desta relação, que poderia gerar reflexões mais frutíferas caso questões no centro do debate contemporâneo fossem levantadas em seus pontos de fricção. O escritor russo Mikhail Shishkin criticou a terrível vida de privações democráticas na URSS, a escritora cambojana Vaddey Ratner compartilhou o relato dramático da sua infância em meio à Guerra Civil em 1975, por exemplo.  O ponto alto da noite foi uma espécie de dramatização de uma conversa entre David Frakt e Darrel Vanderveld (este ausente), respectivamente advogado de defesa e ex-promotor de Mohammed Jawad, prisioneiro paquistanês em Guantánamo, acusado de atacar um soldado americano com uma granada no Afeganistão em 2002. Levado para a prisão com 16 anos, passou lá 7 anos, sob pesada tortura que o levou a uma tentativa de suicídio.

Jawad foi liberado em 2009, e a leitura dramática trouxe a reconfortante conclusão, a mesma de Rushdie, de que ambos foram levados a buscar justiça por estarem “do lado da constituição americana”.

Minha aguda consciência latino-americana me levou rapidamente ao ponto que me incomodava desde o início: o debate deveria ultrapassar a superfície. Nas nossas terras os problemas de restrições democráticas e práticas de tortura também tiveram seus momentos gloriosos. E esta experiência de memória, ainda que não vivida, me dizia que algo estava fora do lugar. Saber que Eduardo Galeano é parte do festival me trouxe tranquilidade. Mas o tom geral do evento não lembrou que o ponto estratégico da discussão, as infrações do governo americano aos direitos humanos e liberdade de expressão, não iniciou no mundo pós-11 de setembro. Basta voltar o olhar para o recente passado do sul desta “America” que não acaba na fronteira com o México. E que emaranhados de argumentos, ideologias e políticas culturais que definem “democracia” e “liberdade de expressão” levam a ambiguidades e pontos de tensão raramente possíveis de resolver. Ainda que o texto de Rushdie para o New York Times, publicado em 27 de abril, tenha o louvável mérito de destacar como corajoso o posicionamento político de intelectuais controversos como Noam Chomsky e Edward Said, os pontos de tensão da atual Venezuela ou Cuba, por exemplo, foram um silêncio incômodo.

O que não ficou em silêncio, em um acontecimento surpreendente logo no início do festival, foi a elétrica reação de um senhor de cabelos brancos (certamente com uma agenda política clara) que, ao ouvir as primeiras palavras de Rushdie sobre democracia e América, bradou: “What about Bradley Manning? And Julian Assange? Nenhuma palavra sobre eles no site do PEN”. Rushdie, na dignidade que apenas uma séria e longa luta política efetiva podem dar, respondeu apropriadamente. O ponto de tensão na arena, que invariavelmente deve existir quando se trata de noções ideológicas embebidas de paixão, veio de forma inesperada. O grande trunfo do festival, que certamente está do lado certo da História, tem a obrigação ética de fazer surgir os senhores de cabelos brancos. Porque sim, “E o Bradley Manning?” é a pergunta certa ao se falar de democracia e liberdade de expressão. Fico feliz ao perceber que a PEN tem o poder de fazer surgir o senhor de cabelos bancos. E que me lembrou de que o julgamento do Manning, o soldado americano que se declarou culpado da acusação de vazar documentos para o WikiLeaks e pode receber a pena de 20 anos na prisão, acontece daqui a pouco mais de um mês.

Sobre a colaboradora: Marina é uma historiadora que estuda as relações entre poesia de vanguarda e punk rock em Nova York nos anos 1960 e 1970 para sua tese de doutorado. Estuda na UFRGS e no momento está morando em Nova York, pesquisando na New York University e escrevendo sobre literatura norte-americana contemporânea.