Quando você me deixou, meu bem…” 

O Abismo Prateado é a mais nova produção cinematográfica a sair, indiretamente, da cabeça e do coração de Chico Buarque. Contudo, diferente de Budapeste (2009), que é no sentido mais estreito da palavra uma adaptação da obra literária homônima, O Abismo… inspira-se muito livremente na canção ‘Olhos nos Olhos‘, de 1976, famosa na versão de Maria Bethânia. Assim, neste filme a música de Chico serve muito mais como inspiração sensível do que como fio narrativo em que trama se apoia.

Violeta (Alessandra Negrini) perde o marido, que a avisa através de uma mensagem na caixa eletrônica do celular que sua viagem a Porto Alegre será só de ida, que não voltará para ela, nem para o filho, nem para o recém comprado apartamento em Copacabana, e reforça sua decisão com uma justificativa repetida por três vezes, cada vez mais intensa e dilacerante: “Eu não te amo mais. Eu não te amo mais. Violeta, eu não te amo mais!”.

Assim, essa mulher que parece ter vivido toda sua vida sem maiores contratempos, dentista carinhosa e boa mãe sente a dor do abandono daquele em quem, provavelmente, mais confiava, e que naquela mesma manhã havia a amado com tanto vigor e tesão. Violeta cai no abismo.

O filme de Karim Aïnouz (Madame Satã, 2002) é uma vertiginosa acompanhante de Violeta durante esse único dia cheio de viradas e redescobertas, onde o som dos ambientes mistura-se às emoções da protagonista, numa mixagem maravilhosamente bem construída que nos remete a O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho.

Em meio ao movimentado Rio de Janeiro, os enquadramentos de Karim conseguem isolar sua protagonista, construindo um universo particular de sua dor e desespero. Alessandra Negrini, por sua vez, entrega-se tão completamente a Violeta que não há dúvidas sobre seus sentimentos e intenções. Por essa sensibilidade tão natural, a atriz venceu o prêmio de atuação no último Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano de Cuba.

O Abismo Prateado chega aos cinemas brasileiros já como um filme antigo: lançado na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2011 (!) e seguidamente no Festival de Cinema do Rio de Janeiro, não foi diretamente para o circuito comercial porque o diretor havia assumido outros projetos. Tal fato, que pode parecer desleixo, foi na verdade uma decisão muito acertada, pois deu a Karim e ao produtor tempo para negociar um maior número de cópias e assim assegurar à obra uma boa distribuição. Hoje O Abismo Prateado está em um número considerável de salas pelo Brasil, mas o longa não merece ser visto apenas por sua boa distribuição.

Em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (26 de abril, 2013), o diretor assumiu que esse talvez tenha sido seu trabalho mais “destramado”. É clara a ausência dos padrões mais tradicionais de roteirização na construção do enredo, e em alguns momentos ficamos com a sensação de que a música em que se inspirou possibilitava uma trama mais redonda. Mas ainda que vez ou outra – como na conversa à beira-mar entre Violeta e Nassir (Thiago Martins) – os diálogos soem artificiais e incomodem, o roteiro bem sucede quando se sustenta nas sensações e sentimentos da protagonista.

De modo geral, O Abismo… funciona muito bem, e assim como Violeta mergulha no abismo, nós mergulhamos nela. Quando ela é machucada pela vida (atropelada ou tropeçando em vigas de aço), quando se sente perdida e desesperada (na floresta nos fundos de uma construção ou no túnel barulhento e perigoso), quando chora à beira-mar ou dança embriagada e descontrolada: nós estamos com ela.

Assim o dia passa e a noite que todos nós vez ou outra temos que enfrentar se encerra. O que sobra é Violeta, ainda dolorida, mas indubitavelmente viva, e assim esse belo filme de Karim fecha com uma agradável versão da música que o inspirou, na voz da talentosa Bárbara Eugênio.

“Olhos nos olhos, quero ver o que você diz 
Quero ver como suporta me ver tão feliz” 

Update: finalmente está disponível a versão de Barbara Eugênia usada no filme para a música de Chico. Aproveitem: