Há tempos não assistia a um filme italiano, talvez desde Habemus Papam (2008), de Nani Moretti, aquele sucesso de público e crítica que não me empolgou nem um pouco. Mas eis que atualmente dois filmes italianos contemporâneos que se diferenciam na proposta, estilo e temática estão em cartaz no país; ambos, contudo, se encontram aqui, nesse prezadíssimo site, e serão base de análise da revitalização do atual Cinema della nostra mamma Italia!

Além das diferenças de proposta, esses filmes também vivem diferentes fases de percurso: enquanto um acaba de chegar à tela grande, o outro já se prepara para ir às prateleiras das locadoras (ainda existem locadoras?). Sendo assim, por cordialidade aos mais velhos, começamos por Cesar Deve Morrer, de Paolo e Vittorio Taviani.

Vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio Ecumênico do Júri no último Berlinale, o filme estreou por aqui durante o último Festival de Cinema do Rio, mas infelizmente não assisti. Agora, felizmente, está disponível no circuito comercial com distribuição da Europa Filmes. A obra mostra a encenação de Julius Caesar, peça do incomparável bardo, e tem um elenco formado por presos da penitenciária romana de Rebibbia. Brutus, Cassio, Marco Antônio, Cesar e todos os outros personagens da obra de Shakespeare são levados ao palco nas interpretações de condenados por ligação com o tráfico, organização de grupo mafioso, assassinato e etc, fazendo um link entre a dramaturgia e as histórias pessoais.

Contudo, o filme não se limita aos ensaios da peça ou à dificuldade que esses homens tiveram em compreender e incorporar seus personagens. A sábia – e talvez mais ousada, mais ousada até do que a escolha do elenco – decisão dos diretores (uma dupla de irmãos octogenários, vencedores da Palme D’or em 1977 por Pai Patrão) foi transformar a própria encenação da peça em uma encenação. Assim, o documentário torna-se um docudrama, lindamente fotografado em preto em branco, que felizmente nunca cai na sátira do formato mockumentary.

Cesar Deve Morrer torna-se, assim, um filme sobre o poder da arte, sobre o impacto da obra shakespeariana e sobre a infinita capacidade humana de sonhar e surpreender. Emblemática é a fala de um dos homens, Cosimo Rega, que interpreta Cássio e talvez o de atuação mais impressionante, dizendo que, ao conhecer a arte, sua cela tornou-se uma prisão.

Impossível não assistir a Cesar Deve Morrer sem pensar no sistema prisional brasileiro. A proposta desse filme só funcionou porque a administração prisional italiana topou a ideia, e uma fala do diretor de Rebibbia nos dá indícios de que a prática do teatro faz parte do cronograma regular do presídio. Olhando para o Brasil vemos um sistema prisional saturado, ineficiente e moribundo, adoentado pelo vírus da corrupção. Quantas potencialidades esse sistema não ceifa? Acima de tudo: quantas grandes vidas não dilacera ao fazer dos presídios um esgoto sem possibilidade de redenção?

Os problemas da Itália não se assemelham aos do Brasil, nem quanto ao tamanho da população carcerária nem quanto à renda per capita, e por isso as soluções são diferentes. Ainda assim, é importante assistir a Cesar Deve Morrer com a viva lembrança da situação brasileira, se não para seguir exatamente o mesmo exemplo, pelo menos para que lembremos de que a arte é instrumento de transformação.

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Hermanos Taviani: octagenários, diretores e vencedores do Urso de Ouro.

Não apenas transformadora, a arte (e mais especificamente, a fama) pode também ser enlouquecedora. Reality – A Grande Ilusão trata justamente desse louco desejo de sucesso e desse impulso por estar on the spotlights que contagia a maioria de nós nesse mundo saturado por reality shows, em que a humanidade faz a linha evolutiva se curvar diante do deus-televisão.

Luciano (o ótimo Aniello Areno) é um peixeiro extremamente dedicado à famiglia, que completa sua renda fazendo um esquema ilegal de revenda de um equipamento doméstico comercializado por sua mulher e que extravasa seus dotes artísticos em pequenas performances familiares. Ao participar de um casamento e conhecer Enzo (Raffaelle Ferrante), celebridade ex-integrante do Il Grande Fratello, o Big Brother italiano, Luciano fica fascinado pela fama e faz de seu objetivo de vida entrar na próxima edição do reality. Aos poucos, tal objetivo transforma-se em obsessão e termina em irremediável loucura.

Acima de uma boa construção dramática, esse novo filme de Matteo Garrone, diretor do premiado Gomorra (2008), é uma crítica à alienação das massas diante desse equipamento eletrônico – alienação que, vista na tela, nos remete imediatamente à realidade brasileira.

Para construir tal crítica, Matteo embrenha-se no que há de mais italiano na Itália: a família, suas mammas, seu estilo de vida, discussões corriqueiras e o jeito daquela gente, além de salpicar a história com referências à religião e à crise política do país e fazer belas referências ao bom Cinema do passado: no início, a decoração exagerada e as personagens carregadas nos transportam para as bizarrices circenses de Fellini, no meio do filme, os testes para Il Grande Fratello são realizadas nos clássicos estúdios da Cinecittà, e durante toda a trama Aniello constrói seu protagonista de um jeito bonachão e carismático que se assemelha muito às interpretações de Roberto Benigni.

Embora perdendo muito a força na sua metade final, o filme conquistou o Prêmio do Júri na última edição de Cannes (presidida pelo italiano Nanni Moretti) e vem sendo considerado por parte da crítica como o revitalizador da comédia italiana, gênero que parece ter se perdido em descaminhos do tempo.

Incrível é saber que o sustentáculo dessa obra, Aniello Arena, saiu de um grupo de teatro da penitenciária de Volterra, na Toscana italiana, onde cumpre prisão perpétua por triplo homicídio (nunca assumidos), cometido a serviço da organização mafiosa napolitana Camorra.

A passagem de Arena dos palcos do presídio às telas do Cinema se deu pelo diretor teatral Armando Punzo, que coordena o grupo de teatro de Volterra e é amigo do diretor Matteo Garrone. Um dia Garrone foi até o presídio acompanhar o trabalho do amigo, conheceu a interpretação de tirar o fôlego de Arena (apresentando um solilóquio de Hamlice, montagem de autoria de Punzo misturando o Hamlet de Shakespeare, a Alice in Wonderland de Lewis Carroll) e o resto é história – história que pode ser vista na tela grande, felizmente em cartaz nos cinemas brasileiros.

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Aniello Arena: um ator dentro de um presidiário.

Arena torna-se assim a personificação bem sucedida do projeto dos irmãos Taviani em Cesar Deve Morrer. Importante dizer que nos créditos do filme dos Taviani, quando os nomes dos atores aparecem na tela, o público descobre que muitos deles hoje desempenham profissionalmente atividades de interpretação, escreveram livros sobre suas vidas e realizaram outros feitos motivados pelo impulso artístico.

Já Arena, de Reality, recebeu inúmeras críticas positivas por seu trabalho e teve sua performance comparada à frieza realística de De Niro e Pacino. Mas o mais curioso fica por conta de um episódio que só parece daquelas brincadeiras do destino: quando em turnê com as peças de Punzo, enquanto os atores não presidiários se hospedam em hotéis, Arena e outros prisioneiros da companhia têm de se registrar no presídio local, e se fosse em Roma, seria na Rebibbia dos rapazes de César…

O Cinema italiano se enlaça de uma forma surpreendente e maravilhosa através desses dois filmes de muita qualidade, que também por uma brincadeira do destino resolvi ver no mesmo dia, um seguido do outro. Assim, ambos, cada um à sua maneira, me transportaram à realidade brasileira e me fizeram refletir sobre o poder místico da arte, desejando que um dia nossas autoridades logo também percebam isso e tratem de recuperar o tempo perdido.