Causou polêmica o comentário de Kevin O’Leary, empresário canadense multimilionário que comemorou, semana passada no programa da CBC Lang & O’Leary Exchange, um dado indicando que as 85 pessoas mais ricas do mundo concentram metade do capital particular mundial, enquanto aproximadamente 3,5 bilhões de pessoas vivem com menos de 1 dólar por dia. Piorando ainda mais a declaração, disse que “celebra o capitalismo” e que dados assim servem para “motivar os mais pobres a conquistarem o sucesso”1

Curioso é que, num daqueles incríveis episódios de sincronicidade, as declarações de O’Leary se encaixam perfeitamente com a estreia dessa semana nos cinemas, O lobo de Wall Street, novo filme de Martin Scorsese, com Leonardo DiCaprio, indicado a cinco Oscars, sobre a trajetória do golpista do mercado de ações, Jordan Belfort.

A história é construída a partir das autobiografias de Belfort, cujos direitos foram adquiridas para o Cinema por aproximadamente US$ 940 mil2. A partir disso, entendemos estar diante de alguém tão sagaz e escorregadio que conseguiu fazer dinheiro até mesmo com sua derrocada – e o filme só reforça essa imagem, gerando más interpretações de que glamorizaria o criminoso, quando o que vejo é que faz brilhantemente o exato oposto.

Jordan é um cara que aos 26 anos já faturava US$ 1 milhão por semana, tinha um iate com um helicóptero, uma Ferrari branca (“como a do seriado Miami Vice”) e, como não poderia faltar, era casado com uma verdadeira Barbie (no filme, a irracionalmente linda Margot Robbie). Nos anos noventa, quando suas fraudes foram descobertas e ele foi condenado à prisão, o prejuízo aos seus investidores já chegava aos US$ 250 milhões. Ainda assim, da condenação de quatro anos, cumpriu apenas vinte e dois meses, e dos US$ 110 milhões em indenizações, só pagou US$ 11,6 milhões. Hoje, vive de palestras sobre técnicas de venda, se autointitulando “o maior vendedor do mundo”, faturando US$ 2 mil de cada participante.

O verdadeiro Jordan Belfort, "o maior vendedor do mundo"
O verdadeiro Jordan Belfort, “o maior vendedor do mundo”

À parte das cifras, sua história começa de forma semelhante a de outros jovens ambiciosos de uma sociedade tão mergulhada no capitalismo como os EUA: prodígio, mas ainda bom moço, chega a Nova York com a esposa para trabalhar de corretor na Wall Street, em meio aos lobos e touros. Contudo, com a falência da empresa, Jordan, já picado pela mosca azul do dinheiro, parte para o mercado paralelo (e ilegal) de ações, oferecendo a gente pobre e desinformada, donas de casa e carteiros, ações podres, ao custo de centavos e com praticamente nenhuma possibilidade de lucro.

Assim começa sua escalada financeira, que se amplia rapidamente e ganha ares legais com a fundação da Stratton Oakmont, em parceria com outros tão ambiciosos e corruptos quanto ele – o mais importante deles é Donnie Azoff, em excelente interpretação de Jonah Hill, tão criticado por ter recebido sua segunda indicação ao Oscar, mas que certamente faz aqui mais por merecer do que em sua primeira nomeação, pelo insosso papel em O homem que mudou o jogo (de Bennett Miller, 2011).

Scorsese conta essa história sem muito moralismo; no ritmo ideal, mantendo sua tradicional câmera agitada, o diretor constrói um anti-herói certamente desagradável e que sabemos ser um pária, mas não deixa de transformá-lo em algo fascinante, que sempre consegue atrair (trair) nosso olhar, justamente como um lobo. Por isso, creio que o grande teste de fogo desse filme é ser compreendido não como uma glamourização de sua figura, mas uma obra em parte aberta a conclusões e julgamentos particulares.

Acertada é a decisão de fazer de Jordan o narrador, muitas vezes olhando diretamente para a câmera, levando a audiência ao mesmo nível daqueles que hoje pagam US$ 2 mil por suas palestras motivacionais. Bem como em recriar alguns vídeos caseiros sobre ele, especialmente comerciais de sua empresa, que hoje estão disponível no YouTube, mostrando o dinamismo e humor irônico de Scorsese. Tudo parece farsa, pintadas com as cores do ridículo.

Brilhante é o retrato do mundo do investimento, onde Scorsese inova com vigor diante dos clássicos sobre o tema, como Wall Street – Poder e Cobiça (Oliver Stone, 1987), ainda que Jordan tenha muito do Gordan Gekko, de Michael Douglas, e até algo de Charles Foster Kane, de Orson Welles. Di Caprio, contudo, embora tenha bons momentos, parece repetitivo, uma versão anos 80 do Gatsby que recentemente interpretou (O grande Gatsby, Baz Luhrmann, 2012), e deve começar a tomar cuidado para não entrar no modo automático de atuação que às vezes engole os atores (vide Denzel Washington e Al Pacino).

Diante de seus empregados, Jordan é como um pastor no púlpito, e seu sermão em busca das benções financeiras do Senhor Capitalismo contém todos os ingredientes dos melhores cultos pentecostais: tom emocional/motivacional, fé no abstrato, casos de vitórias particulares (conta história de superação de uma das funcionárias tal qual um pastor uma história de cura) e até música de louvor (uma hilária canção indígena do lobo, ensinada por Matthew McConaughey, em participação pontual).

O contraponto “profano” está nos episódios de excesso doentio promovidos por Jordan e seus parceiros, como o abuso de drogas, as festas orgiásticas com strippers e os desafios financeiros no escritório, incluindo arremesso de anões (planejado pelos sócios como se numa reunião de negócios seríssima) e a oferta de US$ 10 mil para que uma funcionária raspe a cabeça (cena que, pela excelente composição, é diga de um filme de horror, símbolo da degradação pela ganância).

O lobo é misógino, egocêntrico, constrói um universo que gira ao seu redor e pensa, como muitos bem-sucedidos economicamente, que o mundo lhe pertence e nada pode lhe atingir. O filme segue o tom de sua personalidade, e uma visão rasteira pode interpretar isso como as intenções do diretor, quando um olhar atento sobre as diversas camadas revela, de fato, duras críticas. Em quase três horas de filme, estamos diante de um espetáculo desagradável, que ao ridicularizar intermitentemente seus personagens (por exemplo na hilária e patética cena em que Jordan tenta chegar em casa sob efeito de drogas pesadas), nos afasta dos simples desejos materiais e nos incita a reflexões críticas sobre o mundo atual, um mundo de Belforts, Murdochs e O’Learys.

Por falar em O’Leary, assim como ele, Jordan celebra o capitalismo, sem ligar para os efeitos colaterais, até porque eles não lhe afetarão – é o esgoto jogado no jardim do vizinho pobre. Ambos parecem pensar que o que falta às pessoas é vontade, desconsiderando que algumas sociedades têm os braços da oportunidade (para o bem e para o mal) bem abertos, enquanto outras ainda nem mesmo podem ser chamadas de sociedades. Mas como lobos, isso não importa, não há piedade, eles só estão interessados em caçar.

  1. Reportagem e vídeo em: http://revistaforum.com.br/blog/2014/01/empresario-canadense-comemora-noticia-de-que-35-bilhoes-de-pessoas-vivem-na-pobreza/
  2. Isabel Fleck, na Folha Online, em 24/01/2014: “O lobo de Wall Street estreia criticado por glamorizar golpista