I.

Não vou mentir.

E, pfff, nem precisa: Os Cantos é um livro difícil. Os motivos são muitos. Citações, referências, alusões, técnicas de recorte poemático avançadas, armadilhas, poesia prosódica usada em grande monta… Pro leitor ter uma ideia, você encontra até mesmo ideogramas chineses no meio do livro. É uma bagunça, um caos. Mas isso é algo que muitos outros textos poderão dizer com mais propriedade. Meu objetivo aqui não é o de ressaltar o fato do livro ser um livro difícil, pois, acredite, você muito provavelmente vai constatar isso nos 50 primeiros versos de um livro grande, um livro bem encorpado com suas 800 páginas de poesia feita, refeita e desfeita ao longo de quase 50 anos (e pasmem: o diabo do livro ainda ficou incompleto).

Meu objetivo aqui é o de encorajar o leitor a ler o livro. A primeira forma de fazer isso é não buscando dar um fio da meada, pois o livro “não tem”, ou indicando uma bibliografia, pois a grana é pouca, ou mesmo indicando sites nebulosos que possuem a iiiiincrível capacidade de nos fazer dormir. A meu ver, a melhor forma de um leitor se encantar por um livro de poesia é o leitor encontrando poesia nesse livro (isto é: aquelas frases, aqueles trechos para colocarmos na carreta do Facebook). Isso pode parecer redundante, mas, considerando que uma das discussões mais recorrentes sobre Os Cantos é a discussão se ele é ou não poesia, mas qualquer outra coisa (Carpeaux fala em “poema épico fracassado”), creio que esse esforço será de grande ajuda para o leitor.

II.

Quando o livro é muito difícil, é natural que tentemos pular partes. Quando ele é difícil pra burro, é natural que desesperemos e pulemos o início (ou o fechemos de uma vez – um estouro!). No entanto, juntemos forças para ler com atenção o primeiro Canto. Acho que se fizer um comentário um pouquinho mais caprichado nesse comecinho (mas só um pouquinho mesmo), a coisa pode ser mais agradável no decorrer do percurso.

O livro começa com a palavra “E” seguida de um verso todo monossilábico. Essa palavra “E” aparecerá muitas outras vezes ao longo do livro, sendo um procedimento estilístico de múltiplas implicações no corpo do texto. Para ficarmos com uma, ele é ótimo para se amarrar partes que não possuem lá muita afinidade, o que ocorrerá inúmeras vezes em nossa jornada.

E por falar em jornada, surpresa! Quem a literatura do século XX adora pegar pra parodiar e/ou escrever romances caudalosos cheios de capítulos avant le garde? Quem, quem?

Ele mesmo: Homero!

Pound começa a partir de uma paráfrase do canto onze da Odisseia, onde Odisseu desce ao submundo para bater um papo com Tirésias. A passagem é muitíssimo famosa e acabaria por redundar no clima ou na sensação que temos ao ler Os Cantos: a de que estamos lendo um monte de versos alheios (no Canto XXVII ele diz: “Eu não colho nem construo.”), que estamos numa espécie de antiquário (ou numa joyless region, se é que me entendem…). É como se estivéssemos mergulhando no inconsciente coletivo, o que a simples paráfrase de Homero explica bem. Ou, para ser mais exato, a paráfrase de uma tradução renascentista de Homero. Sim, é isso mesmo que você leu, Pound não parafraseou bem o texto original grego de Homero, mas o de uma tradução renascentista!

Essa relação explícita encontra base num verso fundamental para o Canto: “Um homem sem fortuna e com um nome a vir” (uso-me da tradução de José Lins Grünewald, editora Nova Fronteira, edição comemorativa dos 40 anos, 2006). Talvez para o livro inteiro, se é que dá pra falar em “livro inteiro”. Isso lembra muito o Here Comes Everybody do Finnegans Wake de Joyce. Aliás, Os Cantos lembra muito o Finnegans Wake, seja pelo plano da repetição dos fatos no decorrer da história, seja pelo plano metamórfico que se embasa na tradição cultural da humanidade (seja pelo fato da gente não entender nada). Gosto de ver, sendo assim, esse verso como uma mensagem otimista, como se Pound dissesse que o melhor ainda está por vir. A descida de Odisseu no submundo, isto é, no pior lugar do universo, mostra-o claramente, pois, em meio a todo um clima de desolação e de tristeza, temos, pela fala de Tirésias, o prenúncio de novos tempos, temos o vislumbramento de que coisas boas virão.

Naturalmente, existem interpretações muito mais ricas que esta. O fato desse verso-chave ter sido dito por alguém chamado Elphenor não é gratuito. Se o leitor estiver disposto a pegar uma picareta e uma carreta de bananas-dinamite, recomendo começar a ler sobre a história de Elphenor na Odisseia. Recomendaria também que ficasse atento, pois, no decorrer do livro, tanto o verso como variantes do nome Elphenor aparecerão. Isso pra não mencionar que o sentido do verso, de um homem cujo nome ainda está por vir, remete ao episódio de Odisseu com o ciclope e aquele trocadalho sobre “homem nenhum”. Ou a expressão do “ramo de ouro de Argicida”, que pode nos ligar à Eneida de Virgílio, mais especificamente ao episódio em que Enéias deve conseguir um tal ramo de ouro para também descer ao inferno e conversar com Anquises (que aparece no Canto XXIII). Logo, dupla descida? Lembremo-nos que a concepção clássica das regiões submundanas é diferente da hodierna; ao descer para o inferno, tanto Odisseu quanto Enéias vislumbram o futuro, vislumbram seu destino.

Mas enfim. O que o leitor tem que ter em mente desse primeiro Canto é o de que ele não bem começa uma jornada de volta pra minha terra, mas começa uma jornada de encontro à deusa Afrodite. Posso dizer que, por extensão, é uma jornada às belezas culturais da humanidade, o que o clima de desbravamento dos primeiros Cantos poderá expressar bem.

III.

Acho que com essa introdução nós já chegamos ao cerne ou a uma espinha dorsal básica do livro inteiro. O leitor deverá lê-lo com uma perspectiva bem fragmentada, entendendo que, se não captou tudo, isso é perfeitamente comum (isso é perfeitamente comum com qualquer livro de poesia, aliás). A tarefa de se encontrar com a tradição cultural do ser humano é uma tarefa complexa que inevitavelmente nos levará ao estudo incessante de bibliotecas e alfarrábios. À Babel de Borges. É por isso que, muito além de querer interpretar cerebralmente o livro, o leitor deve interpretá-lo espiritualmente, buscando passagens que nos sejam belas e reveladoras.

A primeira, a meu ver, está no final do Canto IV:

 

“Cinza-oliva aqui perto,

                        distante cinza-fumo do rochedo,

            Asas rosa-salmão da águia marinha

                        lançando sombras cinzas sobre a água,

            A torre como imenso ganso de um só olho

                        alça o pescoço acima da aléia de olivas.

 

            E escutamos os faunos a acusar Proteu

                        dentre o cheiro de feno sob as oliveiras.

            E as rãs cantando contra os faunos

                        na penumbra.”

 

(Eu peço que o leitor feche os olhos e imagine a cena. Se a coisa for bem feita, creio que um estímulo até mesmo para uma releitura, digamos, colorida, dos Cantos anteriores será de bom grado.)

A primeira parte do livro, que incorpora toda uma Odisseia, se perfaz de passagens de cunho marítima, de visões, de citações da mitologia grega, dá a entender que estamos navegando não sabemos exatamente para onde, mas estamos navegando.

Visitamos, por exemplo, Tróia no começo do Canto IV: “Palácio em luz esfumaçada”. Vemos destruição se fundir com a da natureza, vemos sua destruição, suas ruínas navegarem conosco:

 

A fumaça adere ao rio,

            Folhas de pessegueiros brilham n’água,

            Golpes de som na névoa vespertina,

                        Bote passa raspando pelo vau,

            Vigas douradas sobre a água preta,  

                        Três degraus em campo aberto,

            Postes de pedra cinza conduzindo…

 

O recorte de Pound das imagens é praticamente perfeito. E tende apenas a aumentar seu nível, posto que Pound foi um dos fundadores da estética literária do começo do século XX denominada Imagismo, em que a imagem era o fundamento do poema, devendo ser tratada com parcimônia e precisão impecáveis, com um esmero pra lá de esmerado. Posteriormente, o contato de Pound com as fontes mais límpidas da poesia oriental somente apuraria seu senso estético, mas, nesta primeira parte, neste esquema de 30 Cantos, o que temos são correlações com a Odisseia, são viagens, epopeias de teor marítimo, são “Mares e estrelas sem limite, / luz de Iâmblico, / as almas ascendendo” (Canto V).

Acho que se adotarmos tal perspectiva, como se viajássemos dentro dum barquinho de papel, podemos apreciar a paisagem e ao mesmo tempo ver tanto as epístolas do Canto IX quanto o começo da jornada (tripla, quádrupla, quem sabe!) infernal no Canto XIV, por exemplo: “Sobre o podre do inferno / o imenso ânus, / fracionado em saliências / sustendo estalactites”. Pois estamos navegando.

[Confira amanhã a segunda parte de Os Cantos, de Ezra Pound]

Sobre o colaborador:  Matheus de Souza Almeida, nascido em Goiânia (Goiás) à 12 de abril de 1992, é um estudante de Direito e leitor de poesia. De poesia. Afora os textos não ficcionais da faculdade, praticamente só lê poesia. Quase nada de prosa (a não ser a poética). Pode também ser encontrado no site Recanto das Letras, em que esporadicamente publica coisas esporádicas.