Como poeta de vanguarda, Mário Chamie (1933-2011) pode ser inesperado. Após esta primeira leitura de uma obra do autor conhecido pela Poesia-Práxis, um dos vários grupos experimentais que surgiram no Brasil ao longo das décadas de 1950 e 1960, posso dizer que tive uma surpresa. Por uma antologia como Sábado na hora da escuta (1978), que mostra cronologicamente sua evolução poética de 1955 a 1974, podemos perceber que Chamie, apesar do seu caráter de “vanguarda”, não aderiu a algumas das grandes rupturas formais de sua época. O autor parece não ter se afastado das inovações formais realizadas até então, mas ainda assim não pretende criar uma poesia que deixe de ser baseada em versos e outras estruturas já estabelecidas. Daí a sua briga com os concretistas, que visavam à exploração máxima do visual e do aspecto gráfico da poesia no livro-objeto.

Considera-se como grande marco da poesia de Chamie Lavra lavra (1962), livro que lhe trouxe um prêmio Jabuti e a consagração da crítica pelo seu projeto. Assim sendo, a maioria das pessoas se concentra em citar poemas seus dessa obra, mas por sua antologia o que podemos ver é que há vários poemas relevantes escritos antes dela. Em Os rodízios (1958), por exemplo, temos um intitulado“Rodízio do corpo”:

Dia. A avenida jaz num leito

quando sou inerte neste reino

de dormir. Pedra sobre pedra,

seus andores duram em terra

e são chamados casa, edifício.

Movo os olhos e contudo rijo

meu corpo imóvel nunca leva

às duras alamedas graça aérea.

Necessário que o físico (cabeça,

feixe de ossos e ágeis peças)

permaneça rodízio senão móto-

contínuo onde ruas sejam o fóco

de luz na sombra e vice-versa.

 

Eis mover. O movimento humano

das coisas que animo, se amamos.

 

De Lavra lavra, sua obra mais conhecida, cito o trecho inicial de “Do rio ao enterro”:

Rio

1 – Turvo. Os pés trazem barro. O barro leva os pés

ao fundo. Não lava a onda suja. A água inunda.

Raso

2 – rio. Corrido mole grosso. Campo, corpo móvel,

visto ventre. Ventre leve, corpo liso d’água e pele.

Lento

3 – turvo. Os pés comem passo. O passo leve os pés

ao curvo. Não salva a cave curva. A água afoga.

Pardo

(…)

Sei que não é o caso da maioria, mas quem leu os primeiros poemas dos irmãos Campos pode ver que, na verdade, Chamie escreveu algo parecido, só que resistiu a seguir o caminho posterior próprio dos concretistas. Ainda assim, pode se perceber que a estruturação do poema, a inovação da organização dos versos e a ênfase em palavras colocadas à direita que interligam os tópicos numerados se tratam também de um experimento para além da versificação tradicional da língua portuguesa.

Até aqui já pode se notar também como o poeta tem um especial interesse pelas relações entre o corpo e o espaço. Em Lavra lavra, o enfoque é no espaço rural, na terra, no trabalho do lavrador, em sua dor cotidiana. A dureza da atividade agrícola se reflete em sua escolha lexical, assim como na ambientação visual da cidade em “Rodízio do corpo”, primeiro poema aqui citado. A exploração feita ao máximo da temática rural nesse livro se mostra muito eficiente ao expor as relações entre o trabalho e o homem, entre o corpo e a terra na agricultura. Como pode se imaginar, aqui também já temos um aspecto que permeia todos os poemas seguintes de Chamie: o viés crítico-social (“participativo” como era chamado nos tempos da ditadura). A seleção de poemas vindas dessa obra certamente me instigou a ler Lavra lavra por inteiro.

Chamie, de certa maneira, parece ter tomado certo cuidado em não formular um projeto de ruptura extremo. Seria “uma saudável exceção” dentro das vanguardas de sua época, como afirmou o crítico José Guilherme Melquior? Pessoalmente, mesmo que isso seja verdade, não sei se isso é uma boa qualidade para um poeta. Até Now tomorrow mau (1963), vemos uma experimentação prolífica da parte do poeta, que abre novos caminhos e novos meios de explorar os temas que lhe eram pertinentes, porém esse padrão não se manteve. Quase todos os poemas dos livros seguintes seguem uma mesma fórmula (nada inovadora) para um tema diferente a cada obra. No seu intuito de renovação poética, Chamie parece ter feito algo de relevante, como pode se observar em Os rodízios e Lavra lavra, mas não constituiu um percurso efetivo daí em diante.