Siri Hustved nasceu em 1955, em Minnesota, EUA. É casada com o também escritor Paul Auster. Seu primeiro romance, The blindfold, lançado em 1992, foi traduzido para dezesseis línguas. Ph.D em língua inglesa pela Universidade de Columbia, Siri, além de ficcionista, é poeta e ensaísta.

Entre suas obras publicadas no Brasil estão Desilusões De Um Americano (2010), O Encantamento De Lily Dahl (2008) e A Mulher Trêmula (2011). Todos lançados pela Companhia das Letras.

O verão sem homens narra a história de Mia e Boris. Depois de casados há trinta anos, e sem nenhum aviso, ele decide que é momento de dar um tempo no relacionamento. A pausa tem nome completo e endereço – é francesa, vinte anos mais jovem, colega de laboratório dele. Mia sofre um colapso nervoso e é internada. Na sua volta para a casa sente um deslocamento imenso, o que a faz voltar para sua cidade natal.

Abaixo, trecho disponibilizado exclusivamente para o Posfácio:

“Ele não era uma pessoa fácil de estar casada, o seu pai”, disse minha mãe.

“Não”, falei, “eu sei disso.”

Minha mãe estava sentada em uma cadeira, abraçando seus joelhos finos. Pensei comigo que, embora a idade tivesse feito seu corpo encolher, havia também feito dela uma pessoa mais intensa, como se a falta de tempo à frente a houvesse despido de toda gordura — física ou mental.

“Golfe, o direito, palavras cruzadas, martínis.”

“Nessa ordem?”, sorri para ela.

“Possivelmente.” Minha mãe suspirou e esticou a mão para tirar uma folha morta de um vaso na mesa a seu lado. “Eu nunca contei isso a você”, disse ela, “mas, quando você ainda era pequena, acho que o seu pai se apaixonou por outra pessoa.”

Respirei fundo. “Ele teve um caso?”

Minha mãe balançou a cabeça. “Não, acho que não teve sexo. A retidão dele era absoluta, mas houve sentimento.”

“Ele lhe contou isso?”

“Não. Eu descobri.”

Então esse era o ciclo vicioso da vida conjugal, pelo menos entre os meus pais. O confronto direto, de qualquer espécie, havia sido extremamente raro. “Mas ele acabou admitindo?”

“Não, ele não confirmou mas também não negou nada.”

Minha mãe comprimia os lábios. “Ele tinha muita dificuldade, você sabe, de falar comigo sobre qualquer coisa dolorosa. Ele dizia: ‘Por favor, não. Eu não posso’.”

Enquanto ela falava, uma imagem mental do meu pai se formou abruptamente na minha cabeça. Ele estava sentado de costas para mim, olhando silenciosamente o fogo, uma revista de passatempos a seus pés. Depois deitado na cama do hospital, uma figura comprida e esquelética embalada em morfina, já não mais consciente. Lembro de minha mãe tocando o rosto dele. A princípio, com um único dedo, como se refizesse seus traços diretamente sobre o corpo, um desenho sem palavras da expressão do marido. Mas em seguida ela apertou a testa dele com a palma da mão, suas faces, olhos, nariz, pescoço, pressionando a carne com a força de uma mulher cega desesperada para memorizar seu rosto. Minha mãe, ao mesmo tempo forte e arrasada, lábios contraídos, olhos arregalados de urgência, começou a se agarrar a seus ombros e braços e depois a seu peito. Virei de costas diante dessa exigência privada de seu homem, essa declaração possessiva de tempo passado, e saí do quarto. Quando voltei, meu pai tinha morrido. Parecia mais jovem morto, estável e incompreensível. Ela estava sentada no escuro com as mãos no colo. Linhas finas de luz da veneziana listravam sua testa e sua face, e naquele instante senti um profundo respeito, apenas reverência.

Em reação ao meu silêncio, minha mãe continuou. “Estou falando nisso agora”, disse ela, “porque às vezes desejei que ele tivesse arriscado, tivesse se atirado aos pés dela. Ele podia, é claro, ter fugido com ela, e depois podia se cansar dela…” Ela expirou ruidosamente, uma longa respiração estremecida. “Ele voltou para mim, emocionalmente, quero dizer, até onde era possível para ele. E isso durou alguns anos — essa distância —, depois acho que ele parou de pensar nela, ou, se pensava, ela já tinha perdido aquele poder.”

“Sei”, falei. Disso eu entendia. A tal da Pausa. Fiz força para lembrar o soneto 129. Que começa assim: “O gasto de espírito na devastação da vergonha”, e depois os versos sobre luxúria, “luxúria em ação”. Em algum ponto vêm as palavras “assassina,  sangrenta, cheia de culpa…”

Relegada ao desprezo logo que fruída;*

Alguma coisa, alguma coisa… e daí:

Insana ao perseguir, e assim na possessão,
Extrema ao ter, depois de ter, e quando à espera,
Bênção na prova, mas provada, uma aflição,
Antes uma alegria, após, uma quimera:
Tudo isso o mundo sabe, embora saiba mal
Como evitar o céu que leva a inferno tal.

“Quem era ela, mamãe?”

“Que importância isso tem?”

“Nenhuma, talvez não tenha”, menti.

“Ela já morreu”, disse minha mãe. “Ela morreu faz doze anos.”