Para finalizar a série de textos que escrevi sobre a história nos detalhes, gostaria de falar brevemente sobre um dos textos que me inspiraram a escrever sobre os detalhes, um texto de Carlo Ginzburg intitulado “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, que foi publicado pela Companhia das Letras na coletânea de ensaios Mitos, emblemas, sinais – Morfologia e História.

Na verdade, quero me focar numa história que me pareceu, desde a primeira vez em que a li, tão curiosa quanto potencialmente embebida em uma reflexão teórica muito interessante. Trata-se da história de Giovanni Morelli, que publicou um peculiar estudo sobre arte no final do século XIX. Morelli publicou com um pseudônimo, Lermolieff, um estudo em que concedia especial atenção a um detalhe aparentemente banal das pinturas: as orelhas.

O objetivo do estudo era ajudar a identificar os quadros autênticos em detrimento dos falsos, e também para dar maior precisão à atribuição das obras aos seus autores. Dado que muitas obras não eram assinadas e os falsificadores eram donos de uma perícia invejável, muitas vezes os erros aconteciam, e obras eram consideradas de autoria de alguém que não as havia pintado, tanto na boa quanto na má fé.

O que chama atenção no caso de Morelli não é seu objetivo – é de se supor que diversos outros estudiosos de arte e curadores de museus tivessem a mesma preocupação –, mas sim a forma pela qual chega a ele. Morelli escreveu que as falsificações ou as marcas mais idiossincráticas de um pintor não estão nos elementos mais vistosos, mas justamente nas partes mais obscuras dos quadros – i.e., nos detalhes.

Para levar a cabo o método proposto por Morelli, fazia-se necessário “(…) examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés.” (p. 144) Era possível captar o artista naquilo que ele não se atentou a “disfarçar” com o verniz da apresentação formal ou estilística.

Como desdobramento de seu método, Morelli chegou a catalogar orelhas feitas por Boticelli, por exemplo, além de outros pintores, conseguindo, assim, que quadros a eles atribuídos ou deles falsificados fossem identificados. Por mais surreal que pareça alguém catalogando escrupulosamente orelhas – assim, soltas –, o método de Morelli ganhou alguma força, apesar de duramente criticado, e conseguiu ajudar na identificação de diversos quadros.

O ensaio de Ginzburg vai muito além da história de Morelli, fornecendo uma galeria de exemplos cuja variedade evidencia a erudição do historiador e sua capacidade de conciliar e fazer dialogar objetos e sujeitos tão distantes no tempo e no espaço. Para o presente texto, no entanto, o caso de Morelli é suficiente para que alguns corolários sejam trazidos à tona e discutidos.

Diante das discussões e análises que foram levadas a cabo ao longo dos três textos anteriores, o método de Morelli se mostra assaz significativo, pois mostra que o estudo dos detalhes não é um curiosismo ou um estudo fadado à especificidade que constituiu seu objeto de estudo. Os detalhes são reveladores justamente porque não sendo o foco principal de uma obra – seja uma pintura ou um livro –, acabam carregando marcas subjetivas que os elementos principais trataram de sublimar por meio de um estilo mais carregado ou uma apresentação mais escrupulosamente polida.

Isso não significa que os detalhes são irremediavelmente contraditórios em relação ao “resto” da obra, mas que eles complementam as interpretações e ajudam a compreender pormenores que porventura não tenham ficado claros no corpo central da obra – consciente ou inconscientemente. A tauromaquia de Hemingway, o mecanismo macabro de Kafka e a natureza em Steinbeck são todos emblemas de microssignificados, fragmentos que quando postos diante do todo, levam a uma reavaliação do corpo da obra.

A análise das partes centrais e das obscuras não leva a um paradoxo – embora muitas vezes leva a uma reavaliação considerável –, mas sim à própria subjetividade e intenções do autor. Se um escritor “se trai”, é nos detalhes. E “traição” não é aqui usada no sentido negativo, mas no sentido de se constituir nuance da ação humana, sua própria mutabilidade diante da intempérie dos tempos e da experiência existencial, emblema de suas dúvidas e angústias, ou seja, da substância que o faz mais humano.