A leitura de obras historiográficas pode ser encarada com uma aguda torcida de nariz por muitos leitores. Embora eu consiga entender as razões que levam muitas pessoas a procurarem evitar obras de ciências humanas em geral – eu mesmo, historiador de formação, às vezes escolho um romance em detrimento de um livro de sociologia, antropologia ou mesmo historiografia –, não posso dizer que concordo com elas. Muitas vezes tento convencê-las a dar mais uma chance ou perseverar um pouco mais.

Tendo me inserido no texto e deixado minimamente evidentes minhas posições com relação ao universo de livros de ciências humanas, sinto-me mais à vontade para falar – e tentar convencer a ler, por que não? – a obra As damas do século XII, do historiador francês Georges Duby.

Duby foi um dos medievalistas franceses mais famosos e um dos historiadores que com maior fôlego e erudição souberam penetrar a carapaça de “idade das trevas” que recobre o fino tecido da vida e da sociedade medievais. Ao lado, por exemplo, de Marc Bloch, autor dos belíssimos A sociedade feudal e Os reis taumaturgos, e de Jacques Le Goff, autor do já clássico A civilização do Ocidente medieval, Duby contribuiu, ao longo de sua vida, para deslindar significados e sentidos profundos da vida no medievo e suas dinâmicas, desde as que mais imediatamente saltam aos olhos até aquelas que jazem obscuras aos observadores de ocasião. Concomitantemente, Duby ainda contribuiu para ampliar e aguçar o arcabouço teórico e metodológico para a pesquisa historiográfica acerca das mentalidades, cujo lastro encontrava-se precisamente no mergulho no universo medieval.

Olhando para As damas do século XII temos um belo exemplo de como Duby conseguiu penetrar fundo na vida do período: seu conhecimento acerca do medievo era tamanho que uma pesquisa sobre as mulheres no século XII se torna possível. O historiador francês conhece tantos documentos, livros, artefatos, monumentos, vestígios, construções e relatos acerca daquele período, que consegue transitar naquele mundo com tranquilidade o suficiente para desenterrar um tema tão obscuro como o era a posição da mulher no medievo.

O livro se inicia com Duby nos introduzindo aos percalços da pesquisa, pois os documentos históricos nos quais ele se baseou foram produzidos por homens e, portanto, pensam e retratam a mulher sob seu ponto de vista. Além disso, os tratados morais, os ensaios, as obras literárias, as canções e os monumentos em que a concepção de mulher aparece possuem um caráter diferente do texto que o historiador propõe, fazendo-se necessário, nesse sentido, que eles sejam abordados em suas peculiaridades próprias, isto é, em seus próprios termos. Em tal introdução encontram-se incrustadas belas lições historiográficas acerca das potencialidades e limitações das interpretações da realidade, ponderações necessárias e cautelares que só fazem enriquecer a abordagem de Duby acerca de seu objeto.

A obstinação de Duby em buscar a mulher não lhe cegou em sua abordagem, pois ele soube ponderar as limitações de suas fontes e escapou das armadilhas da romantização das retratadas, como a seguinte passagem explicita muito bem:

 

“Sabia bem que não veria nada de seu rosto, de seus gestos, de sua maneira de dançar, de rir, mas esperava perceber alguns aspectos de sua conduta, o que pensavam de si próprias, do mundo e dos homens. Nenhuma de suas palavras me chegou diretamente. Todos os discursos que, em seu tempo, lhes foram atribuídos, são masculinos.” (p. 379)

 

Essa obra, aliás, cresce em sentido quando posta diante de outra obra de Duby, intitulada Idade Média, idade dos homens, em que o historiador procurou investigar a proeminência social e histórica dos homens no medievo, embora a focasse muitas vezes a partir da concepção de amor do período. Pelo caráter ponderado de sua visão por sobre o mundo medieval e por sua consciência da posição subalternizada da mulher nele, Duby ressalta com lucidez que:

 

“Por muitíssimo tempo escreveu-se a história sem se preocupar com as mulheres. Evitemos cair no defeito inverso de conceber uma história das mulheres que não se preocupasse com os machos.” (p. 195)

 

de modo que sua obra, embora intitulada As damas do século XII, procura

 

“Compreender melhor as relações que mantinham os dois sexos, esse é o objetivo de minha investigação.” (p. 195)

 

Na minha opinião, um dos maiores méritos no livro de Duby é a maneira como ele aborda a questão das mulheres: antes de fechar o foco da análise na mulher em sua singularidade, ele procura rastrear as imediações históricas e as circunscrições sociais que existem em torno delas. É possível notar isso tanto pela trajetória do historiador quanto pela maneira como ele conduz sua argumentação, pois a todo momento Duby procura promover o diálogo entre as mulheres propriamente ditas e as mudanças históricas em curso na sociedade e no mundo em que elas se encontravam.

Essa perspicácia, calcada na erudição do historiador em relação à Idade Média, faz com que As damas do século XII seja tanto um livro sobre as damas do século XII como sobre o século XII, pois a compreensão de um passa pela compreensão do outro. Talvez seja possível falar das mulheres do século XII sem tocar na questão do desenvolvimento da noção de “amor cortês”, nas investidas moralizantes da Igreja Católica como parceira e instrumento das cortes ou mesmo no recrudescimento das preocupações dinásticas como manutenção de uma ordem cosmológica e social, mas isso empobreceria muito a análise e exporia a abordagem ao risco constante de anacronismos epistemológicos.

Para Duby, a posição da mulher no medievo encontra-se intrinsecamente ligada ao que era a vida, a moral, a sociedade, a política, o poder e as relações sociais naquela época. Sem perscrutar esses aspectos constituintes da vida social do período, sem ponderar sobre o lugar da mulher nesse conflituoso conflito sócio-histórico, a abordagem perde força ou torna-se muito voltada para dentro de si, no caso, “muito” voltada à questão da mulher em si própria.

A título de exemplificação, pode-se recorrer ao peso que a manutenção da sucessão dinástica no delicado equilíbrio do poder político e religioso teve sobre a vida das mulheres. O prosseguimento de uma linha dinástica – e de seu poder – dependia da concepção de um varão que, na idade certa, reclamaria para si o nome da casa, seus bens, seu status e uma esposa digna do valor dessa casa. No caso da concepção de dois varões, acabaria por fracionar o poder da casa, visto que seu legado – tanto simbólico quanto material – teria de ser dividido entre dois legítimos reclamantes. Em meio a esse estado de coisas é que devemos buscar situar a mulher, pois ela era, a partir das propriedades fecundas que a natureza lhe dera, peça-chave de todo esse status quo e sua manutenção. Ela sofria a pressão constante para manter-se donzela até o casamento, entregar-se ao marido, ser-lhe dócil e obediente no leito e na vida conjugal, e submeter-se às exigências da moral católica e de sua casa dinástica, sob a pena de sofrer escárnio, violência, entre outras punições.

Se cotejarmos essa questão olhando somente para a ponta da lança – isto é, o impacto que alcança o universo feminino – deixamos de perceber todo o processo e as dinâmicas sociais que tornaram possível que essa lança fosse produzida e arremessada – isto é, o conjunto histórico-dialético que tornou aquele impacto possível e, sob aquele ponto de vista, necessário.

Advém dessa concepção um enriquecimento e uma agudeza interpretativa avassaladoras. Como parte de um todo, a vida das mulheres do século XII se reveste da substância histórica na qual foram banhadas como condição vivenciada concretamente, fazendo com que abordá-las seja tocar, por minimamente que seja, em todo o sistema da vida humana no medievo. Embora a inflexão da análise esteja incidindo sobre as damas do período, isso não impede que todo um universo de problemas, questões e reflexões apareça e constitua sua própria urdidura.

Em face de tudo o que procurei ressaltar aqui em relação ao livro de Duby, espero que aqueles leitores que fujam de obras de historiografia reconsiderem a leitura delas. Sem querer me tornar proselitista, encerro por aqui deixando minha efusiva sugestão.

A edição de bolso referenciada na barra lateral do site reúne três estudos de Duby que foram, a princípio, publicados separadamente. São eles:

– Heloísa, Isolda e outras damas do século XII;
– A lembrança das ancestrais; e
– Eva e os padres