Creio que o que primeiro chama a atenção no romance de Bruno Margo é o título. A pergunta que o segue é aquela que questiona qual é o ponto de intersecção entre duas figuras tão distintas como Sandokan – um personagem pirata criado por Emilio Salgari – e Mikhail Bakunin – ideólogo pai do anarquismo. A resposta a essa pergunta, de acordo com o que a leitura do livro nos proporciona, é simples e, ao mesmo tempo, complexa: o que as conecta é o autor e seu contato particular com eles através das caóticas reviravoltas que marcam seu romance e a existência.

Não há um grande arco que conecta um e outro, e creio ser esse um dos pontos mais desconcertantes de todo o livro Sandokan & Bakunine: trata-se de um livro por demais subjetivo e idiossincrático para que maiores e mais sólidas conexões de sentido sejam estabelecidas, ou pelo menos à primeira vista. Se é preciso reconhecer que a prosa de Margo é muito bem arquitetada, com frases límpidas, belas e secas, por outro lado é preciso dizer que a urdidura dos fragmentos é tão encriptada que o romance se aproxima perigosamente de um subjetivismo indevassável ao buscar trazer a lume os próprios mecanismos complexos da leitura da realidade.

O livro inicia com uma introdução curiosa, com Margo dizendo que o arquivo contendo o texto do livro fora roubado de seu computador e disponibilizado na internet por sua esposa. Esse evento desencadeou muitas leituras e comentários, alguns dos quais foram inseridos no livro através das notas de rodapé – recurso, aliás, do qual Margo se vale em vários momentos como uma leitura alheia concomitante à leitura própria.

Tendo situado tal insólito acontecimento, o autor português inicia a história, nos introduzindo a um cenário selvagem da Papua-Nova Guiné, onde o explorador B.A. Barrow é morto pela fatal ferroada de uma mariposa-vampiro que fora introduzida dentro de seu mosquiteiro por um alguém misterioso. Dessa sequência somos levados a conhecer Artur, um adolescente asmático que teve acesso ao diário do explorador, passando a lê-lo com assíduo interesse, encontrando no interior do livro uma fotografia de Bakunin, figura com a qual passa a confundir o explorador. Artur, ainda, vive as incertezas proporcionadas pelo desaparecimento de Joana, uma amiga sua à caça da qual se encontra.

A história avança com situações e objetos trazendo à tona memórias que se mesclam com a realidade, constituindo um fino e intrincado traçado narrativo. As imagens se entrelaçam com histórias acerca de sua família, relatos de seus pais acerca de seus parentes e suas trajetórias assombradas por perseguições e solavancos existenciais. No ritmo louco dessas lembranças que rompem a linearidade do continuum narrativo, o diálogo entre os elementos da trama ocorre de maneira discreta, como a constituir passo a passo uma constatação mais abrangente.

Sandokan & Bakunine conta, ainda, a história de um serial killer de animais num zoológico de Tóquio, o de um assassino russo chamado Rostov-on-Don, e de Richard Dadd, autor de um quadro perturbador no qual um demônio destoa do resto da cena retratada, como um elemento de estranhamento. Essas sub-tramas envolvem tanto o desaparecimento de Joana e o histórico familiar de Artur, quanto a exploração desse pelos diários de B.A. Barrow.

Tão tresloucada reunião serve a vários propósitos. Um deles talvez possa ser encontrado no fato de que Bruno Margo esteve envolvido com o cinema – e, por consequência, com a linguagem e a narrativa cinematográficas –, de modo que sua prosa funcione com um timing, uma estrutura, uma apresentação e objetivos oriundos daquele universo. Segundo o próprio autor, Sandokan & Bakunine é a materialização literária de um filme que ele gostaria de dirigir.

À luz desse fato, o livro passa a ter outras dimensões. A visualidade das histórias chama a atenção de imediato: o quadro de Dadd, as selvas de Papua-Nova Guiné, o assassino russo, o serial killer animal etc. Todos eles seriam visualmente impactantes e serviriam bem a outra das marcas cinematográficas da obra de Margo, como os cortes bruscos, as transições de cena, os usos de fusões encadeadas de objeto a objeto e assim por diante. O que desconcerta o leitor é o fato de que esses recursos funcionam melhor filmados do que postos no papel – mas talvez isso se dê pela minha falta de jeito com os virtuosismos modernistas.

Contudo, por mais que os usos narrativos de Bruno Margo chamem a atenção, me parece que sua preocupação em mostrar o fluxo perceptivo de uma pessoa lendo o mundo é um dos pontos nevrálgicos do romance. Talvez pudéssemos dizer que se trata de heurística ou de gnosiologia, mas acredito que esses termos obscureceriam o sentido caótico que Margo concede a todo esse processo.

Mais do que fatalismos anti-interpretativos propriamente ditos, Sandokan & Bakunine procura mostrar a maneira fortuita como as ligações de sentido são feitas, e como as amarrações explicativas que criamos são balizadas pela infinitude de fragmentos de realidade a que temos acesso. Essa hipótese foi embasada com diversas passagens do livro, tais como:

“Infelizmente, como acabava de constatar, por muito que tentasse ater-se aos fatos, Artur não conseguia deixar de construir narrativas. E, sem parar, os significados, intenções e nexos de causalidade subiam à superfície, como o véu de dióxido de carbono que, sem saber, os mergulhadores arrastam pelo oceano. Porém, devia notar-se, tudo aquilo não era inédito, aquelas não eram as primeiras conjeturas incertas, alicerçando hipóteses vagas, juntando-se depois num fio de meditações incontroláveis, todas elas muito pouco fundamentadas. Se Artur refletisse, encontraria inúmeros exemplos de como, no passado, a realidade contrariara seu raciocínio, por vezes de evidente lucidez. De fato, os objetos talvez fossem invulgares, pelo menos naquele contexto, mas as apreciações seguintes, e a impossibilidade de as impedir, aumentavam sua singularidade, o que, de forma demasiado difusa, mais tarde compreendeu.” (p. 69)

ou esse:

“É que, a julgar pela minha experiência, não se pode escolher nem o que recordamos, nem o que esquecemos. Além disso, o cérebro tem critérios de catalogação absurdos – más memórias assentes em alegrias, ou boas lembranças fundadas em mágoas. Ou seja, as impressões, e mesmo os fatos, têm uma vida muito própria.” (nota de rodapé, p. 125)

ou ainda esse, no qual Artur tenta formular uma explicação plausível para o quadro do pintor Richard Dadd:

“Anos depois, Artur teve a certeza de que nada se escondia na imagem, porque não era possível que as pistas, espalhadas pelo quadro em abundância, servissem justamente para ocultar. Esse fato confrontou-o com uma ideia, com a qual acabaria por se conformar, mas assustadora no início: se bastara a sua vontade para construir vestígios, então, em vez de análises fundadas, eles podiam sustentar fantasias. Nesse caso, todos os outros significados e teorias que tinha por certos, assentes em inúmeros sinais e provas, as explicações para o mundo à sua volta, talvez não passassem também de construções de sua imaginação.” (pp. 141-142)

Há uma evidente reflexão metaliterária presente nesses trechos, e Sandokan & Bakunine talvez fale mais sobre sua escritura do que sobre a história dos personagens que o habitam. A insólita combinação de tramas e sub-tramas do romance parecem ser a carapaça visual que permite observar justamente esse processo: a complexa, não raro bizarra e ao mesmo tempo fascinante e desconcertante faculdade que possuímos de construir narrativas que interpretam e põem ordem no mundo sensível, isto é, na realidade concreta.

Tiro meu chapéu para as estratégias e os artifícios de Margo para pôr essa questão em relevo. Acho, inclusive, que a compreensão que ele possui do universo do cinema tem grande potencial para a literatura, pois nos coloca em contato com uma materialidade que tem poder de transcender a visualidade pela visualidade, afinal, como mostra Sandokan & Bakunine, não se trata de ter a literatura o espetáculo como fim.

O que, por outro lado, continua me intrigando – tanto com relação ao romance de Margo quanto à boa parte da literatura contemporânea – é tão intenso interesse com relação às supostas insuficiências da interpretação e da apreensão da realidade, como as limitações e parcialidade delas, não raro condenando-as à impossibilidade e à insustentabilidade. O que, nisso tudo, fascina tanto os escritores da contemporaneidade? Quais os significados subjacentes de tamanha ênfase?