Em março deste ano comprei passagens para Istambul. Como para qualquer viagem seguiu-se a clássica pesquisa de lugares para visitar e coisas para ver, o que, no caso da Turquia, significava palácios, igrejas, incontáveis mesquitas e um Museu da Inocência.  Aberto em 2012, o museu transforma em vida real o maravilhoso livro de Orhan Pamuk e nubla ainda mais as fronteiras entre ficção e realidade, já tão ambíguas no romance.

Pontos turísticos literários sempre me interessaram: fui ao quarto de Keats em Roma, à casa onde cresceu Ernest Hemingway perto de Chicago, ao apartamento 221B na Baker Street e ao museu Dickens em Londres. Mas o museu de Istanbul foi diferente de tudo isso. Não se trata de uma coleção de relíquias pessoais, ou de uma brincadeira óbvia com um personagem de ficção, o museu de Pamuk realmente materializa o que era literatura, torna concreto o que era letras no papel.

Na verdade, o próprio livro se pretende mais do que ficção: Pamuk vende sua história como realidade, afirma que realmente houve um Kemal e uma Füsum, e que a família Keksin realmente habitou a casa da rua Çukurkuma onde hoje está exposta a curiosa coleção. Após visitar diversos museus particulares na Europa e descobrir que era possível contar através deles qualquer história que se desejasse, Kemal teria procurado Orhan Pamuk, grande escritor de seu país, e pedido a ele que contasse sua história em dois meios.

Viajei com uma amiga e ambas lemos o livro um pouco antes de partirmos. Ela acreditou de cara no que o escritor lhe contou, eu, talvez porque tenho certa tendência pra artista, duvidei. Artistas, por gosto e disposição, mentem. Não faz muito tempo, fui jantar com alguém que trabalha no mercado financeiro e ele me disse que não gosta de filmes de Wall Street. “Nada acontece como nesses filmes”, ele me disse. Eu acho que sorri para ele, devo ter sorrido, pedi desculpas porque ia partir seu coração e disse que sets de filmagem também não são como em A Noite Americana. Lembro que ele ficou indignado, porque afinal se existe uma coisa sobre a qual cineastas deveriam entender é de sets de filmagens. Mas claro que entendemos sobre sets, eu respondi, mas eles não são cinematográficos. Alguém só se torna cineasta por conta de um amor pelo cinema que só pode vir acompanhado de um certo desprezo pelo mundo real. Deve ser o mesmo para escritores.

A primeira frase na minha primeira aula na matéria sobre documentários foi “eles não são a realidade”, são, na verdade, histórias contadas usando a não ficção como matéria-prima. Histórias vêm em todos os formatos e são feitas de todas as coisas. Talvez, o Museu da Inocência seja um história em forma de museu, que usa objetos cuidadosamente arranjados como seu material.

A exposição é organizada em vitrines, uma para cada capítulo do livro, dispostas na ordem. Dentro delas estão os objetos que o narrador supostamente recolheu ao longo dos anos: bitucas de cigarro, presilhas de cabelo, saleiros, talheres, cachorrinhos de porcelana, etc. Um audioguia alterna entre explicações de Pamuk sobre a composição das caixas, sempre mantendo a história de que elas foram construídas a pedidos de Kemal Basmaci, e trechos do livro aos quais elas correspondem. Algumas vitrines estão fechadas e o escritor anuncia que elas serão abertas assim que ele estiver satisfeito com elas; mais uma vez, duvido. Será que as cortinas fechadas não fazem parte do jogo? Será que no museu, como no romance, o processo de criação é uma história tanto quanto a história em si?

Ao mesmo tempo que duvido da gravação de Pamuk, as inscrições na parede afirmando que alguns dos objetos expostos foram doados pela família Keksim são o que me fazem, pela primeira vez, me perguntar se talvez não seja tudo verdade. Por que duvidamos de romances e acreditamos em museus? Por que quando o escritor me conta que sua história é real eu duvido tão prontamente, mas quando leio inscrições nas paredes fico tentada a acreditar? Por que minha amiga acredita quando o autor lhe diz que sua história é real? Por que eu não?

A verdade é que, independente da origem da história, o que o Museu da Inocência faz é exatamente isso: transformar uma história em realidade. Ou ao menos transformar em concreto o que era abstração. O museu de Pamuk é um lugar absolutamente mágico porque ali a literatura sai da página e existe enquanto matéria, a história contada existe, naquela casa e naqueles objetos. O que acontece ali é algo um pouco inexplicável, é óbvio e surpreendente ver uma história contada com outro material que não palavras, ou imagens em uma tela. É como se o escritor pegasse a matéria da realidade e a esculpisse.

A prosa de Pamuk é rebuscada, cuidadosa nos mínimos detalhes, mas sempre pouco confiável. Em Meu Nome é Vermelho ele fragmenta o narrador, conta sua história em diversas vozes, algumas tão improváveis quando a ilustração de uma árvore. O leitor não sabe o que acontece porque são tantos microrrelatos que é impossível seguir o fio e é, claro, impossível que eles contem exatamente a mesma história. Em O Museu da Inocência o processo é o contrário: a voz que ouvimos é tão uniforme e tão centrada que não podemos conhecer nada além dela. Seu museu funciona da mesma forma. Lindo, pensado em cada pequeno objeto, minuncioso, mas nunca podemos ter certeza sobre o que vemos ali.