Proponho o seguinte: discutir um título. Mas do que eu falo quando eu falo em “título”? Certamente não o estou usando como um dos sinônimos de “livro”, necessários para que esta palavra não se repita em demasia – dependendo do tipo, a gente também pode usar o título por extenso ou “o romance” ou, em sendo o caso de um volume de contos, “a coletânea”. Então, não, esta não é uma resenha de Copacabana Dreams, a coletânea de contos da cearense Natércia Pontes, finalista do Jabuti deste ano.

O livro é bonitão, padrão Cosac Naify – nunca vi Elaine Ramos decepcionar no projeto gráfico. Confesso que comprei o meu exemplar porque sabia que ficaria lindo na estante. Mas também o comprei por querer ler mais escritoras, ainda mais as brasileiras, por querer ler mais contos e por querer ler uma escrita que “reúne leveza, humor e uma qualidade que sabe reconhecer e reverenciar o kitsch” – vale a pena conferir a resenha da Camila Kehl.

Mas voltemos ao tema título. Alguns contos possuem títulos longos, que quase se tornam entes autônomos, microcontos que quase dispensam algo na sequência: “Sonho com Sônia Silk, a fera oxigenada”; “O triste fim da Senhora Pochete e Tênis Bamba”; “Tanguinha de oncinha enfiada no bumbum”. Alguns deles não são apenas quase autônomos: “Leda Nagle fala algo doce. Não escuto porque a tevê está no mute.” é um dos títulos que não precedem conto algum; na página seguinte, outro conto, outro título.

Mas o melhor, mesmo, acho que foi esse: “O nome da canção é ‘Michelangelo Antonioni’ ou pode ser ‘Jesus Cristo’ do Roberto Carlos, aquela que tocou no supermercado e você adorou”. No livro, o título ficou assim:WP_20130921_001

Num tweet, eu comentei: Sério, o título da música do supermercado me emociona tanto quanto um texto do Cortázar e uma cena de “Minha vida sem mim”. Este texto foi escrito basicamente para explorar as duas referências citadas no Twitter, que se circunscrevem ao trecho final do título: “aquela que tocou no supermercado e você adorou”. Vamos a elas.

Aquela que tocou no supermercado.

Não costumo prestar atenção às músicas que tocam no mercado (céus, há tempos que não passo por um deles: da última vez em que fui, comprei apenas maçãs rapidinho e não deu tempo da Clarice Falcão me alcançar e me informar do caixa verde), a não ser, claro, quando se inicia um musical no setor de frutas – daí não tem como não prestar atenção.

Como isso nunca me aconteceu, a primeira coisa de que me lembrei foi do filme Minha vida sem mim. Sarah Polley interpreta Ann, uma moça que descobre que tem somente mais dois meses de vida. Ao entrar no supermercado, ela narra em off, a cena em câmera lenta: “O supermercado está frio. Você gosta assim mesmo. As pessoas leem com bastante cuidado os rótulos de suas marcas favoritas, pra saber o quanto de produtos químicos elas têm. E aí suspiram e põem tudo no carrinho, como se estivessem dizendo: Claro, ela faz mal para mim e faz mal para a minha família, mas nós gostamos dela.” Após uma pausa, ela constata: “Ninguém pensa em morte no supermercado.”

Pode ser Beck, pode ser Roberto Carlos. Da mesma forma que o filme de Isabel Coixet, Natércia autoriza o leitor a encontrar o sublime no ambiente mais ordinário e mundano.

E você adorou.

O finalzinho do título, a parte mais destacada pelo corpo maior da fonte, é o que me leva a Cortázar. Julinho era bem gente como a gente e tem um texto excelente chamado “Você tem que ser realmente idiota para”. 1 Nele, discorre sobre quando foi a uma peça de que gostou muito.

De maneira que fico deslumbrado e tão feliz que quando chega o intervalo me levanto entusiasmado e continuo aplaudindo os atores, e digo à minha mulher que os mímicos tchecos são uma maravilha e que a cena em que o pescador joga o anzol e se vê um peixe fosforescente avançando a meia altura é absolutamente inaudita. Minha mulher também se divertiu e aplaudiu, mas de repente percebo (esse instante tem algo de ferida, de buraco rouco e úmido) que sua diversão e seus aplausos não foram iguais aos meus, e além do mais quase sempre está conosco algum amigo que também se divertiu e aplaudiu, mas nunca tanto como eu, e também percebo que ele está dizendo com grande sensatez e inteligência que o espetáculo é bonito e que os atores não são ruins, mas naturalmente não há muita originalidade nas ideias, sem falar que as cores do vestuário são medíocres e a concepção bastante corriqueira e coisas e coisas. Quando minha mulher ou meu amigo dizem isto – dizem amavelmente, sem nenhuma agressividade – eu entendo que sou um idiota, mas o problema é que esqueço disso cada vez que me maravilho ante alguma coisa, de modo que a queda repentina na idiotice vem como a rolha que passou anos no porão acompanhando o vinho na garrafa e de repente plop, um puxão e pronto, é só uma rolha.

Quando leio “você adorou”, a tônica da oração recai sobre “você”. Porque sim, você adorou (curtiu pacas, se emocionou sobremaneira, teve uma súbita epifania), mas é possível que quem esteja junto não tenha tido a mesma reação. Talvez você seja o cara que – em vez de atentar para a duração do filme, perceber que os efeitos especiais nunca conseguem suspender totalmente a descrença ou listar as mil semelhanças com o script de Forrest Gump, como o resto do povo na sala de projeção – não conteve as lágrimas em diversos momentos de O curioso caso de Benjamin Button. Talvez você seja a guria que demorou quase uma década para ver O fabuloso destino de Amélie Poulain ou Speed Racer e que, após finalmente tirar o atraso, não encontra quem não ache a obra datada e sem sentido. Talvez os títulos não sejam estes, mas mesmo assim você entenda a situação.

Natércia Pontes fala com você que se identifica com o título e te chama de ridículo, logo antes de te dar um abraço e dizer “você é dos meus!” – da mesma forma que Cortázar diz “vem cá, ser idiota comigo e aplaudir os mímicos tchecos!”. 2 Porque literatura não precisa de nariz empinado – aliás, acho que todo mundo já está meio sem paciência para isso.

Gostei de Copacabana Dreams porque já estou farto de livro de chato – e, graças à Natércia, este não é um deles.

  1. Perdão pelas rimas internas. Eu poderia revisar, mas o fato é que achei bonitinho quando li.
  2. Para quem estiver curioso para ler, eis o texto na íntegra, retirado do livro “A volta ao dia em 80 mundos”: VOCÊ TEM QUE SER REALMENTE IDIOTA PARA // Há anos percebo e não me importa, mas nunca me ocorreu escrever porque a idiotice me parece um assunto muito desagradável, especialmente se é o idiota quem o expõe. Pode ser que a palavra idiota seja pesada demais, mas prefiro servi-la de uma vez e bem quentinha no prato ainda que os amigos a achem exagerada, em vez de empregar qualquer outra, como bobo, leso ou retardado para depois os mesmos amigos considerarem insuficiente. Na realidade não há nada de grave nisso, mas ser idiota deixa a gente totalmente isolado, e por mais que tenha suas coisas boas é evidente que por vezes há uma espécie de nostalgia, um desejo de atravessar para a outra calçada, onde amigos e parentes estão reunidos numa mesma inteligência e compreensão e se esfregar um pouco neles para sentir que não há diferença apreciável e que tudo va benissimo. O triste é que tudo vai malissimo quando você é idiota, por exemplo, no teatro, eu vou ao teatro com minha mulher e um amigo para ver um espetáculo de mímicos tchecos ou bailarinos tailandeses e assim que a sessão começa certamente vou achar que tudo é uma maravilha. Eu me divirto ou me emociono enormemente, os diálogos ou os gestos ou as danças me chegam como visões sobrenaturais, aplaudo até machucar as mãos e às vezes saem lágrimas dos meus olhos ou caio na risada até quase fazer vivi, e fico contente por estar vivo e ter a sorte nessa noite de estar no teatro ou no cinema ou numa exposição de quadros, em qualquer lugar onde pessoas extraordinárias estão fazendo ou mostrando coisas que jamais tinham sido imaginadas antes, inventando um lugar de revelação e de encontro, algo que nos lava dos momentos em que só acontece o que acontece o tempo todo. // De maneira que fico deslumbrado e tão feliz que quando chega o intervalo me levanto entusiasmado e continuo aplaudindo os atores, e digo à minha mulher que os mímicos tchecos são uma maravilha e que a cena em que o pescador joga o anzol e se vê um peixe fosforescente avançando a meia altura é absolutamente inaudita. Minha mulher também se divertiu e aplaudiu, mas de repente percebo (esse instante tem algo de ferida, de buraco rouco e úmido) que sua diversão e seus aplausos não foram iguais aos meus, e além do mais quase sempre está conosco algum amigo que também se divertiu e aplaudiu, mas nunca tanto como eu, e também percebo que ele está dizendo com grande sensatez e inteligência que o espetáculo é bonito e que os atores não são ruins, mas naturalmente não há muita originalidade nas ideias, sem falar que as cores do vestuário são medíocres e a concepção bastante corriqueira e coisas e coisas. Quando minha mulher ou meu amigo dizem isto – dizem amavelmente, sem nenhuma agressividade – eu entendo que sou um idiota, mas o problema é que esqueço disso cada vez que me maravilho ante alguma coisa, de modo que a queda repentina na idiotice vem como a rolha que passou anos no porão acompanhando o vinho na garrafa e de repente plop, um puxão e pronto, é só uma rolha. Eu gostaria de defender os mímicos tchecos ou os dançarinos tailandeses, porque os achei admiráveis e fui tão feliz com eles que as palavras inteligentes e sensatas dos meus amigos ou da minha mulher me doem embaixo das unhas, e olha que entendo perfeitamente que eles têm toda razão e o espetáculo não deve ser tão bom quanto eu pensava (mas na realidade não pensava que fosse bom nem ruim nem nada, simplesmente era transportado pelo que estava acontecendo como idiota que sou, e isso me bastava para sair e andar a esmo por onde gosto de andar toda vez que posso, e posso tão pouco). E jamais pensaria em discutir com minha mulher ou meus amigos porque sei que eles têm razão e na realidade fizeram muito bem em não se deixar tomar pelo entusiasmo, pois os prazeres da inteligência e da sensibilidade devem nascer de um juízo ponderado e sobretudo de uma atitude comparativa, basear-se como disse Epicteto no que já se conhece para julgar o que se acaba de conhecer, porque isto e nenhuma outra coisa é a cultura e a sofrosine. Não quero discutir com eles de maneira nenhuma e no máximo me limito a afastar-me alguns metros para não ouvir o resto das comparações e os juízos, enquanto procuro conservar as últimas imagens do peixe fosforescente que flutuava no meio do palco, mas agora minha memória se vê inevitavelmente modificada pelas críticas inteligentíssimas que acabo de escutar e não me resta outro remédio senão admitir a mediocridade do que vi e que só me entusiasmou porque eu aceito qualquer coisa que tenha cores e formas um pouco diferentes. Retomo a consciência de que sou idiota, de que qualquer coisa basta para alegrar minha reticulada vida, e então a lembrança do que adorei e desfrutei nessa mesma noite se embaça e se torna cúmplice, a obra de outros idiotas que ficaram pescando e dançando mal, com roupas e coreografias medíocres, e é quase um consolo mas um consolo sinistro o fato de sermos tantos os idiotas que nessa noite se encontram nessa sala para dançar e pescar e aplaudir. O pior é que dois dias depois abro o jornal e leio a crítica do espetáculo, e a crítica coincide quase sempre e até com as mesmas palavras com aquilo que tão sensata e inteligentemente minha mulher ou meus amigos viram e disseram. Agora tenho certeza de que não ser idiota é uma das coisas mais importantes na vida de um homem, até que pouco a pouco vou me esquecendo, porque o pior é que afinal esqueço, por exemplo acabei de ver um pato nadando num dos lados do Bois de Boulougne, e era de uma beleza tão maravilhosa que não pude deixar de ficar de cócoras junto ao lado e permanecer não sei quanto tempo olhando sua beleza, a alegria petulante de seus olhos, aquela dupla linha delicada que seu peito corta na água do lago e que vai se abrindo até perder-se na distância. Meu entusiasmo não nasce apenas do pato, é uma coisa que o pato cristaliza de repente, porque às vezes pode ser uma folha seca balançando na beira de um banco, ou um grou alaranjado, enormíssimo e delicado contra o céu azul ad tarde, ou o cheiro de um vagão de trem quando você entra e tem bilhetes para uma viagem de tantas horas e tudo vai acontecendo prodigiosamente, as estações, o sanduíche de presunto, os botões para acender e apagar a luz (uma branca e outra violeta), a ventilação regulável, tudo isso me parece tão bonito e quase tão impossível que estar aí ao meu alcance me enche de uma espécie de salgueiro interior, de uma verde chuva de delícia que não deveria terminar nunca mais. Mas muitos me disseram que meu entusiasmo é uma prova de imaturidade (querem dizer que sou um idiota, mas escolhem as palavras) e que não é possível se entusiasmar assim com uma teia de aranha que brilha ao sol, porque se você incorre em semelhantes excessos diante uma teia de aranha cheia de orvalho, o que vai sobrar para a noite em que encenarem King Lear? Isso me surpreende um pouco, porque na realidade o entusiasmo não é coisa que se gaste quando você é realmente idiota, ela se gasta quando você é inteligente e tem sentido dos valores e da historicidade das coisas, de maneira que por mais que eu corra de um lado para o outro no Bois de Boulogne para ver melhor o pato, nada me impedirá de dar enormes pulos de entusiasmo nessas mesma noite se gostar da voz de Fischer Dieskau. Agora que penso no assunto a idiotice deve ser isto: poder se entusiasmar o tempo todo com qualquer coisa que você goste, sem que um rabisco na parede possa ser desprezado por causa da lembrança dos afrescos de Giotto em Pádua. A idiotice deve ser uma espécie de presença e recomeço constante: agora gosto desta pedrinha amarela, agora gosto de L’année dernière à Marienbad, agora gosto de você, ratinha, agora gosto dessa incrível locomotiva bufando na Gare de Lyon, agora gosto desse cartaz rasgado e sujo. Agora gosto, gosto tanto, agora sou eu, renitentemente eu, o idiota perfeito em sua idiotice que não sabe que é idiota e goza perdido no seu gozo, até que a primeira frase inteligente o devolva à consciência da sua idiotice e o faça ir pressuroso buscar um cigarro com mãos desajeitadas, olhando para o chão, entendendo e às vezes aceitando porque um idiota também precisa viver, claro que até outro pato ou outro cartaz, e assim sempre.