Começo a desconfiar da existência de um espírito da Mostra que acha que preciso me alimentar direito e por isso cancela sessões nos dias em que eu achei que podia ver cinco filmes e comer era dispensável. Mas se o espírito cancelou uma sessão à tarde e me permitiu o almoço, também fez Amos Gitai aparecer na sessão e o trajeto Conjunto Nacional-Frei Caneca teve que ser feito em corrida desenfreada.

Les Garçons et Guillaume, à Table – O filme é uma adaptação da peça que Guillaume Gallienne, membro da Comédie Française, escreveu e montou em 2008. O roteiro autobiográfico fala de um garoto que precisa encontrar sua própria sexualidade em uma família que, para o bem ou para o mal, decidiu que ele é definitivamente gay.

A sinceridade de Guillaume, que não hesita em expor qualquer neurose, desarma e cativa. Quase como um Woody Allen francês, ele não tem medo de parecer perturbado e, fazendo o papel de si mesmo e de sua mãe, cria um daqueles desajustados adoráveis do cinema. Apesar das peculiaridades do senso de humor francês o filme é bastante divertido, leve e, ao mesmo tempo, contundente ao tratar de questões de gênero, sexualidade e a fluidez de tudo isso.

Child’s Pose – O vencedor do Urso de Ouro de Berlim deste ano vem da Romênia, como diversos filmes ganhadores dos prêmios importantes dos últimos anos. Mas ao invés de olhar para os anos do comunismo, ou para a massa de miseráveis que o fim do regime deixou, o filme de Calin Peter Netzer retrata a classe alta contemporânea de Bucareste.

Uma noite, Barbu atropela e mata um garoto de 14 anos com seu Audi. Ele pode ser condenado por homicídio ou liberado sob o entendimento que tudo não passou de um acidente, seu destino depende da única testemunha do caso e do desejo da família do menino morto. Diante dessa possibilidade, sua mãe, Cornelia, fará de tudo para livrar o filho.

A corrupção da Romênia é certamente um tema, mas não é o foco central do longa. É Cornelia que comanda o filme, sua personalidade dominadora que é ao mesmo tempo opressiva e fascinante funciona como um centro ao redor do qual orbitam os outros personagens, através de seus olhos vemos a relação de Barbu com a mulher e uma constituição familiar tão disfuncional quanto comum. Child’s Pose é um filme denso e extremamente bem feito, um drama familiar particularmente bem atuado.

Ana Arabia – Após ter problemas com o governo israelense e ter passado os anos seguintes trabalhando na França, Amos Gitai retorna a Israel. Ana Arabia é composto de apenas um plano sequência, de 82 minutos, e acompanha Yael, uma jornalista em busca de uma história em uma espécie de favela onde árabes e judeus convivem pacificamente.

Mais precisamente ela vai conversar com os familiares de uma sobrevivente de Auschwitz que converteu-se ao islamismo. Yael caminha pela comunidade e conversa com o viúvo, a filha e a nora de seu objeto, ouve histórias, conversa sobre concretudes e abstrações. Nada acontece, exceto a convivência pacífica daqueles que ninguém acredita que possam conviver. De uma delicadeza única, Ana Arabia é um pequeno manifesto pela paz.

Tom na Fazenda – Em 2009, com apenas 20 anos, Xavier Dolan dirigiu Eu Matei Minha Mãe, misto de autobiografia e ficção que foi o candidato do Canadá ao Oscar de melhor filme estrangeiro daquele ano. Seu primeiro filme era problemático, mas inegavelmente original e criativo. Desde então, Dolan vem amadurecendo visivelmente como cineasta e torna-se interessante acompanhá-lo enquanto sua linguagem se constitui.

Seu filme mais recente é, em termos de linguagem, direção e montagem, extremamente maduro. Há planos belíssimos e construções interessantes, opções estéticas arriscadas, mas que Dolan, hoje, sabe fazer funcionar. Aos 25 anos, o canadense é um diretor estabelecido. Entretanto, ao abandonar as anedotas autobiográficas (ele dirigiu também o bom, e bastante pessoal, Amores Imaginários) e tentar enveredar por uma narrativa complexa e tortuosa, ele acaba com um roteiro esburacado.

Tom vai para a fazenda da mãe de seu namorado morto recentemente, como ou por que o espectador nunca fica sabendo, e lá se envolve com o complicado irmão mais velho de Guillaume. O filme consegue construir tensão, mas não contar efetivamente uma história: falta profundidade aos personagens, Dolan apenas passeia por eles e joga elementos que nunca se articulam em um retrato coerente. No final é um filme bem dirigido, mas com falhas demais no roteiro.