Fevereiro foi um mês para pensar nas orelhas, estes importantes instrumentos de divulgação de um livro. No início do mês, recebi o convite de um amigo (que por acaso também é escritor) para que escrevesse e assinasse as orelhas do seu segundo romance, que será lançado em março. Aceitei o convite, honrada, não sem antes perguntar: tem certeza? É isto que quer? Vou realmente ajudar em algo? Quem sou eu para escrever qualquer meia orelha que seja? A verdade é que existe muita razão por trás dessas perguntas. Começando por mim.

 

Sempre que escolho um livro na livraria, faço um ritual de análise. Olho a capa. Leio a contracapa. Abro a segunda orelha. Foto do autor. Currículo do autor. E, por último, assinatura da orelha e currículo do autor da orelha (se estiver indicado). Já me disseram que tudo isso é mania de editor. Que o leitor por hobby e prazer não faz isso (não faz?). De qualquer forma, a sequência, para o bem ou para o mal, me ajuda a qualificar um livro. Especialmente quando este é o primeiro contato com um autor.

 

Como editora, aprendi a ficar atenta a outros critérios, em especial aqueles relativos às expectativas do autor. A orelha é um dos pontos mais sensíveis no processo de produção de um livro. A cena é bem comum: autor estreante, preocupado com a sua primeira impressão do mercado, almeja alguém reconhecido para escrever a orelha. JK Rowling, Paulo Coelho, Rubem Fonseca. A “tentada” é livre. E a negativa também. É comum escritores famosos negarem o compromisso de assinar um texto assim. Em primeiro lugar porque lhes falta tempo. Em segundo, porque geralmente esta é uma atividade não remunerada. Em terceiro, e finalmente, porque se não existe uma relação deles com o autor, o texto da orelha pode soar falso, forçado ou fraco em informação e adjetivação justamente para não gerar comprometimento de espécie alguma. Daí é aquela coisa: autor e editor recebem o texto da orelha e é uma decepção que será impressa em mil ou dois mil caracteres e viverá junto do livro até a próxima reimpressão.

 

Então você me responde: mais fácil convidar alguém do relacionamento do autor. Com certeza. Sempre acho mais justo. Muitas vezes, não se escapa do que eu expliquei acima. Mas acaba sendo um texto mais próximo do que o autor espera. Também é preciso estar ciente que, por mais amigo que seja, o convidado pode ser um total desconhecido no mercado. Assim, o leitor que se deparar com a orelha lerá o nome “Fulano de Tal” apresentado como uma credencial e se perguntará: “Quem??!!”

 

De qualquer forma, uma verdade precisa ser dita: autor e editora sempre esperam que um texto de orelha seja elogioso. A finalidade é ajudar a vender o livro, fazer com que ele encontre leitores. Num mundo ideal, toda a pessoa deveria se sentir no direito de declinar do convite de assinar as orelhas caso, depois de terminada a leitura, tivesse odiado o livro. Nada mais distante: as pessoas não desistem. Acabam fazendo a orelha de forma neutra, escrevendo tudo e não dizendo nada. Há alguns anos, coordenei a edição de um livro de contos. A orelha chegou e eu pensei: “WTF!!!!!?????” Nunca havia visto tamanha diplomacia. O orelhista havia conseguido fazer um “parecer” sem comprometimento, sem opinião, sem avaliação, sem tesão, sem vontade. Quase como dizer que o autor era um fdp, que o livro era ruim e que ele não colocaria o nome dele em jogo, mas passando a mão em sua cabeça e fazendo carinho. Coisa de gênio. No que, realmente, ajuda uma orelha dessas?

 

O fato é que esse dilema é vivido, em grande parte, pelas pequenas e médias editoras, que não contam com estrutura para remunerar o autor da orelha. Nas grandes editoras, este é um serviço terceirizado, encaminhado para profissionais que saberão dar conta do recado. No caso das pequenas, a solução seria escrever textos institucionais. Sem assinatura, escritos pelo editor, pelo assessor de imprensa ou alguém qualificado e envolvido no processo.

 

Afinal, o que é uma boa orelha de livro? Na minha opinião, ela deve dizer a que veio. Destacar qualidades que possam interessar o leitor, falar sobre a trama, situar no tempo e no espaço e oferecer elementos que o localizem entre os seus pares no mercado e na prateleira. Não deve ter floreios ou análises profundas. É um texto para ser lido na livraria, de pé, em frente a uma das prateleiras. E não deve puxar o saco do autor ao extremo. Isso o orelhista pode fazer em outra ocasião. Também acho um erro classificar gratuitamente o autor como “um expoente de sua geração”. Isso quem deverá dizer é a história e o futuro, não a orelha.

 

E no caso da orelha que escrevi esse mês? Li o livro do meu amigo em dois dias e gostei (assim é sempre mais fácil). Escrevi sobre o enredo e as qualidades do texto sem mentir ou precisar de subterfúgios. Claro que o espaço é pequeno e é necessário estar atento à concisão e objetividade aliadas a um texto vendedor. Mas isso é papo para outra coluna!

 

Na Página 28 de Nu, de botas, de Antonio Prata:

 

“Eu era um ano mais novo que a Margarida e portanto a tratava com a mesma reverência que o Henrique a mim. Às vezes, quando a chamávamos para brincar de esconde-esconde ou pega-pega, ela nem sequer respondia, apenas levantava os olhos de sua pasta de papéis de carta, dava um bocejo entediado e voltava, em silêncio, ao universo kitsch de tons pastel. Agora, contudo, a situação era diferente, tínhamos o Bozo na linha e o poder em nossas mãos: a menina perdeu a pose, soltou três guinchos e só não deu o quarto porque o Henrique a segurou pelos ombros, explicando a urgência: o que deveríamos dizer? Margarida, dando uma mostra de sua maturidade, soltou de bate-pronto:

– Pede uma bicicleta!”