Olhando para aquilo que Raduan Nassar produziu no período em que se dedicou à literatura, não é possível deixar de lamentar – respeitosamente – sua decisão de não mais escrever. Depois de ter nos presenteado com os terrivelmente belos Um copo de cólera e Lavoura arcaica, Nassar decidiu se dedicar integralmente à agricultura, se recolhendo em sua fazenda em São Paulo.

Por essa razão, aos leitores que se sentiram órfãos após devorar os dois livros acima mencionados – comme moi –, a coletânea Menina a caminho e outros textos se apresenta como a possibilidade de travar um último contato com a obra de Nassar, ou pelo menos com uma obra original, que não se tenha ainda lido. A sensação que tive ao longo de toda a leitura foi de admiração misturada com uma melancolia que crescia a cada página, pois sabia que o final do livro representa o desfecho de um caminho que nunca mais percorreria como se fosse a primeira vez. Creio que essas devam ser as sensações que diversos leitores de Nassar tiveram, ou hão de ter, ao percorrer as páginas da coletânea em questão.

Cinco textos formam o corpo do livro. O primeiro deles é o que dá título ao livro, um conto longo, que acompanha a caminhada de uma menina pelo ambiente do que parece ser uma cidadezinha do interior, com as ruas poeirentas, os personagens típicos, os lugares marcados e aquela atmosfera de marasmo entrecortada pelo jeito rude e sem peias das gentes que a habitam.

A cadência do texto é lenta, despreocupada, mais centrada na exploração do que aparece pelo caminho do que no destino em si. Para se ter uma ideia, há uma cena em que a tal menina que protagoniza a história pára para olhar por debaixo de um cavalo, quase tomando um esguicho de urina do animal pelas fuças.

Por mais esdrúxula que possa parecer a situação descrita acima, ela representa uma parte de um todo, e um todo narrado pela prosa de Nassar não pode ser tratada como qualquer coisa. No percurso da menina passamos pela escola, pelo bar, pelas casas, pelas charretes e pelos tipos que habitam cada um desses terrenos, tais como a velha mal-humorada, o valentão do bar, o aluno ansioso pelo fim da aula, a esposa submissamente acatando às vontades do marido e assim por diante. E tudo isso coroado por aquela violência rascante e súbita, que Nassar parece ter pegado emprestada do tremendismo espanhol.

Numa primeira vista não parece haver uma questão grandiosa ou um cotejo filosófico mais preciso, mas não é, ao mesmo tempo, possível eliminá-lo do campo de possibilidades. Considerando o trajeto da menina, da inocência inicial, olhando curiosa por debaixo de um animal, ao contato com a dureza do mundo, encarnada na catarse violenta do desfecho, quem sabe Menina a caminho seja uma espécie de mini-bildungsroman.

O segundo texto intitula-se Hoje de madrugada e chama a atenção pela confusão que causa ao leitor pela ausência de um plot bem definido e pelo silêncio com o qual acontece. Narrado em primeira pessoa, o texto conta um evento ocorrido na madrugada em que o narrador, recolhido em seu escritório, recebe a visita de sua mulher, a qual permanece calada enquanto o observa atentamente por sobre a mesa. O silêncio da madrugada, adido ao silêncio da mulher e o silêncio do narrador com relação aos significados do acontecido gera uma perturbação, justamente aquela que acompanha a estranheza do obscuro e do inexplicável. Parece haver algo de sinistro se arrastando por debaixo daquela superfície de tranquilidade silenciosa.

O terceiro texto, O ventre seco, se apresenta em forma de parágrafos-tópicos enumerados de 1 a 15 – quem sabe seja uma carta. De forma breve mas ricamente trabalhada, Nassar conta-nos a história de um amor que, como tantos, floresceu e feneceu. Atendo-se ao estritamente necessário e sendo categoricamente lírico na dosagem de narrativa factual e emprego de subjetivismos por parte do narrador, a ventura e o ocaso de uma relação, carnal e sentimentalmente falando, vem à tona bem ao gosto do escritor de Pindorama, e com direito à virada final.

Os dois últimos textos talvez encerrem informações valiosas para a compreensão da obra de Nassar e, em meio a isso, de sua decisão de deixar a literatura para dedicar-se ao cultivo.

O microconto Aí pelas três da tarde apresenta, bem ao largo, a trajetória de um sujeito que vai do cotidiano burocratizado, mecânico e monótono de um escritório ou firma qualquer, para o aconchego vagaroso de uma “(…) rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço.” (p. 73) Quem sabe a imagem da rede seja um indicativo do que a experiência no campo podia proporcionar a Nassar mais do que o podia a literatura. É certo que o vai e vem da rede – “a fantasia de se sentir embalado pelo mundo” (p. 73) – comporta bem mais tranquilidade do que a comumente árdua tarefa de escrever e, tanto quanto isso, manter-se ontologicamente coerente com o que se escreve.

Dessa possibilidade aventada é que surge, por fim, o último texto (meu predileto), que é o provocativo Mãozinhas de seda. Logo de início, Nassar declara: “Cultivei por muito tempo uma convicção: a maior aventura humana é dizer o que se pensa.” (p. 77) As farpas são direcionadas aos intelectuais que, como as moças de Pindorama que antes do baile afofavam suas mãos com pedra-pome, cultivam mãos por demais sedosas. A diferença entre eles, diz Nassar, é que as moças de Pindorama “(…) só usavam essa pedra uma vez por ano” e “(…) davam duro no trabalho.” (p. 81) O escritor endereça uma ferina crítica aos intelectuais que não mostram seu rosto e cujas “mãozinhas de seda” indicam pouco contato com a rochosa, árida e irregular superfície da realidade.

Quem poderá dizer com certeza que esse texto não se infla de significação quando considerado diante da decisão do escritor de calejar suas mãos na agricultura antes de preservá-las das agruras por meio da literatura?