A morte é um processo resultante de uma cadeia de eventos mal conhecidos, de início incerto e duração imprevisível.” (p. 73)

Dizem que médicos têm a capacidade de desenvolver notáveis habilidades literárias. Arthur Conan Doyle, Guimarães Rosa, Moacyr Scliar e Anton Tchekhov são exemplos disso. Drauzio Varella também, escrevendo obras de não ficção com narrativa direta, sem floreios linguísticos, mas muita sensibilidade.

O doutor vendeu mais de 500 mil livros apenas com Estação Carandiru (Companhia das Letras, 1999), sua obra de estreia e também a mais famosa, adaptada para o Cinema por Hector Babenco e que será tratada mais detidamente em postagem futura aqui no Posfácio. Por um Fio é seu segundo livro e segue o mesmo estilo de escrita: crônicas breves, fragmentos de histórias construindo um tema maior: o enfrentamento com a morte. A partir do ponto de vista do médico e por sua habilidade na prosa, conseguimos compreender os sentimentos dos doentes.

 

Muitos de meus pacientes encontravam novos significados para a existência ao senti-la esvair-se. (p. 206)

 

O cavalo fica mais esperto quando sente a vertigem na beira do abismo– diz Drauzio, reproduzindo a fala de um de seus pacientes terminais. Assim, de forma direta e com simplicidade, muitas vezes transcrevendo as falas dos doentes, mantendo os vícios e erros de linguagem, é onde se encontra a beleza e toda profundidade dramática deste livro.

Drauzio, médico esguio de olhos tristes e feições preocupadas, em Por um Fio trata de sua longa carreira com pacientes terminais, inclusive contando sobre seu amadurecimento na profissão: “De tanto ser enganado pelas palavras, aprendi a dar mais importância às expressões e aos gestos dos doentes e das pessoas que os cercam.” (p. 33). Sanitarista e infectologista, especializou-se em cancerologia e segue na área até hoje. Famoso por ter visto a bruta realidade dos encarcerados da Casa de Detenção do Carandiru, entre os pacientes que perdeu no desafio da oncologia estava seu irmão mais novo, também médico, relato que nos apresenta no último e belíssimo capítulo, Meu Irmão.

Drauzio perdeu a mãe muito cedo (por volta dos quatro anos) e a avó alguns anos depois, Assim, diz ter se acostumado com a presença da morte. Ateu (“a morte é a ausência definitiva”, p. 7), na medicina decidiu, logo cedo, especializar-se em doenças graves, epidemias, males da civilização, atento aos problemas do mundo e aos erros da sociedade.

Crítico das condições da saúde pública, também discorre um pouco sobre o surto da AIDS nos anos 80 e 90, que enfrentou cara a cara, tendo até mesmo visitado um inferninho gay nos EUA, seguindo dica de um paciente infectado: “Se você está tão interessado em AIDS, vale a pena conhecer os lugares onde a doença se espalha” (p. 138) – e lá foi ele, narrando tudo no capítulo A Epidemia da AIDS.

Descrente no místico (“A crença na vida eterna está fora do alcance dos homens racionais” p. 106), Drauzio, porém, apresenta-se muito sensível aos dilemas filosóficos e em diversas passagens discorre sobre a função do médico e sua condição enquanto espectador do fim:

 

Como conviver intimamente com a infelicidade alheia, sem me tornar um homem amargurado ou insensível? (p. 20)

 

Assume que o difícil é “não me deixar paralisar pela angústia que o contato com a dor do outro provoca” (p. 65). Ser forte diante do fraco e, ao invés de suprimi-lo, como o instinto humano induz, ajudá-lo com a benevolência da profissão: “Na medicina, curar é objetivo secundário, se tanto. A finalidade primordial de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano” (p. 147).

Honesto e singelo, mostra-se piedoso sem deixar de ser científico, racional, médico em todas as linhas da narrativa. Drauzio diz escrever por necessidade 1, justificativa vaga mas compreensível; quase todo escritor diz sentir esse pendor que vem das estranhas e anima os dedos, agitando a mente, preenchendo folhas… Exercendo a escrita, diz sentir-se feliz, e mesmo contando casos tão tristes e tratando de tema tão áspero, não são raros os momentos em que consegue ser espirituoso, engraçado até.

Mostra-se compreensível àqueles que fogem do parente doente: “Ao fechar os olhos diante da perda da integridade física do outro, procuramos agastar de nós o desconforto da lembrança de nossa própria efemeridade” (p. 61), e age do mesmo modo diante dos que recusam o sofrimento terminal: “Uma hora, o destino exige um sacrifício tão grande para continuarmos vivendo que a gente se cansa: em nome do quê, vou passar por isso?” (p. 11). Sabe que o desafio é grande, exige muito do pequeno humano, mas reconhece a força dos corpos que enfrentam a luta: “O desejo de viver é instinto tão arraigado que os seres vivos só se entregam à morte depois de exaurido o último resquício de suas forças” (p. 43).

No final, depois de tão detida e respeitosa análise, parece que ao médico sobra a melancolia: “A vida traz pessoas queridas e momentos de felicidade, que um dia serão tomados de volta” (p. 11) – e aos leitores o desejo de ler mais e mais obras do doutor-escritor.

  1. Roda Viva, TV Cultura, de 25/04/2011