Me foge da memória a época em que minha mãe me levava ao Studio Center, em Santo André, para assistir a Família AdamsDe volta para o futuro III – dois filmes guardados na minha memória afetiva – e O Sombra (minha primeira decepção como espectador de salas de cinema). Era interessante como um teatro tinha em seu palco uma tela grande como principal atração. Também era curioso, e aqui talvez entra em ação a minha criptomnésia, os camarotes no alto, as cadeiras baixas de couro vermelho, os lanterninhas e o cheiro de suor misturado com o de manteiga. O roteiro era quase o mesmo: sábado, começo de noite, minha mãe, seu namorado da faculdade, eu e muita pipoca.

Esse cinema de rua fechou logo quando o antigo Mappin da cidade – uma verdadeira loja de departamento de infinitos andares –  virou Shopping ABC e prometia um cinema de última tecnologia. O mesmo aconteceu nas cidades vizinhas como São Bernardo (onde o melhor cinema de todos ficava dentro do Extra Hipermercado) e São Caetano. A graça de ir ao cinema era justamente ir ao cinema. Transformar o passeio no shopping em um eventual cineminha não era a mesma coisa, porque, de certa forma, gastávamos mais tempo andando de lojas em lojas do que indo direto à sessão. O cansaço da caminhada eliminava parte do divertimento de estar na fila com um saco de pipoca à mão (isso virou um fardo, na verdade). Sem contar os coitados dos lanterninhas que aumentaram as estatísticas de desemprego.

Todavia, reencontrei os cinemas de ruas.

Não era pelo simples charme. As salas fora de complexos de lojas, espalhadas por São Paulo, tinham filmes que nunca chegariam na minha cidade. Eram títulos obscuros, línguas diferentes, rostos nada familiares. Eu ficava em transe e cada vinda à capital era um júbilo. Pegava indicações pela internet, por jornal e com professores do meu colégio – e para minha sorte um deles sempre falava do Espaço Unibanco e do Belas Artes.

O Espaço Unibanco, agora Itaú, continua firme e forte com sua programação (apertando para encaixar sessões variadas entre Um toque de pecado, o novo Woody Allen e Um corpo que cai). Mas ele não deveria ser o único, junto ao Cinesesc, a manter esse charme nas ruas de ser apenas cinema. Sem fazer-se necessário comprar uma camiseta antes, tomar um sorvete no caminho, pagar estacionamento, aderir a um consumo desnecessário só para matar o tempo até a sessão ou subir e descer sete escadas rolantes para encontrar a sala. Os lanterninhas, no entanto, continuaram como meros coadjuvantes em comerciais de seguradoras exibidos antes dos filmes.

O Belas Artes 1marcou minha fase mais assídua entre as salas de cinema de São Paulo. As poltronas não eram tão confortáveis e uma e outra sala era minúscula 2, mas ainda era uma opção válida para ver filmes fora do circuito comercial da Paulista. Havia uma curiosa curadoria de manter um mesmo filme em exibição por um ano, caso a bilheteria dele fosse a maior no período em que esteve em cartaz no circuito. Lembro bem: Medos privados em lugares públicos foi o campeão de manter-se na programação do Belas Artes, nem Titanic padeceu tanto.

É claro que eu não poderia deixar de lado o Noitão, uma maratona de três filmes (um deles sempre era surpresa) que seguiam uma temática. Esse era um dos maiores motivos para gostar tanto desse cinema em particular. A sessão, ou maratona, começava à meia-noite e seguia até o amanhecer. Toda sexta à noite pedia para os amigos me encontrarem na saída da faculdade e de lá levaria todos a bordo do Gol Vermelho (outras belas histórias, fica para uma próxima) ao som de Mando Diao ou The Divinyls até a Consolação.

noitão
Noitão 2005

A popularização do Noitão foi tamanha que sem combinar encontrávamos outros conhecidos por lá. Sem contar as figurinhas carimbadas como o Hitchcock – um senhor de bengala, sempre sentado na fileira da frente e que nunca, nunca mesmo!, dormia.

Tantas pessoas vendo Monty Python ao vivo no Hollywood Bowl, filmes suecos (Amigas de colégio, Tillsammans), animações (A noiva cadáver, Strings), filmes de temáticas GLS, filmes franceses, italianos, iranianos, documentários e alguns bem duvidosos – não quanto à nacionalidade, mas ao tema/qualidade. Os filmes eram apresentados pelo curador do cinema, que, se minha memória não me engana, chamava-se Léo – e lembrava muito um personagem saído direto dos anos 1980.

A balada cinematográfica nos presenteava com cenas peculiares na manhã paulista. Embriagados de sono, nunca entendíamos o que o balconista da padaria do outro lado da Consolação queria dizer sobre a diferença entre pedir uma média e um pão na chapa e um pingado e um pão na chapa. O que ficou resolvido, nesse caso, era que os dois eram a mesma coisa, pelo menos naquele local, e só mudava entre o copo americano e a xícara.

Houve o momento da bolha cinematográfica, onde o Noitão tornou-se uma tradição (recente) e necessitou de mais salas, criando mais filas, trazendo mais gente e, inevitavelmente, mais correria, pijamas, comidas. O que era só cinema virou um piquenique noturno.

Infelizmente, o Belas Artes foi fechado em 2011 (estava aberto desde a década de 1940) após perder o patrocínio do HSBC e o proprietário do imóvel optar por alugar para uma rede de lojas para receber mais aluguel. Contudo, um movimento conseguiu o tombamento – o que impediria uma grande empresa de exibir sua marca na fachada –, mas não houve retorno da exibição de filmes, permanecendo fechado e sem previsão de volta. Fiquei órfão de cinema de rua, outra vez.

Até a última semana.

Exatos 3 anos após seu fechamento, foi anunciada na semana passada a reabertura. Rolou uma festa, mais do que merecida, na esquina da Av. Paulista com a Consolação até altas horas da madrugada – só para lembrar o Noitão, talvez? E ontem a Prefeitura de São Paulo anunciou o nome, Cine Caixa Belas Artes, além de ingressos mais baratos em relação aos outros cinemas. E para alívio dos ex-orfãos, “Podem ficar tranquilos, o Noitão vai voltar!”, confirmou o dono do cinema em meio a palmas e assovios.

Essa volta do Belas Artes é um resgate à memória cultural da cidade. Podem existir outros cinemas de rua, mas eles não podem continuar a perder espaço. Afinal, esses cinemas são apenas salas de exibição, mas não é isso que os apreciadores da sétima arte querem? Um espaço para verem filmes? O charme de estar em uma esquina ou na rua é um adendo bem-vindo. Mais do que isso, só se chamarem os lanterninhas do além.

  1. Nos últimos anos chamado por HSBC Belas Artes
  2. Não me levem a mal, mas há pessoas que pagam quase R$80,00 para ficarem em uma cadeira que se mexe, faz sons, etc. Isto não é cinema pra mim