Em 2013, aos 82 anos de idade, a canadense Alice Munro ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. A autora já tinha alguns livros traduzidos aqui no Brasil, mas, como é regra para mim, geralmente não conheço escritores recém-agraciados com o prêmio da academia sueca, e o Nobel acaba sendo o ponto de partida para lê-los. Felizmente, assim que anunciado, editoras apresentaram novas edições e traduções engatilhadas – como a de seu último livro publicado, Vida querida. Outra delas foi Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, publicado no final do ano passado pelo selo Biblioteca Azul da Globo Livros.

O volume traz nove contos que narram vidas de personagens bem distintas: jovens, idosos, crianças, todas as histórias girando em torno de reencontros, do companheirismo, do amor e de algumas traições. O primeiro conto, que dá nome ao livro, faz referência a uma brincadeira adolescente de duas das personagens, que inventam cálculos matemáticos com os nomes de suas paqueras e, contando em ordem, preveem se suas relações vão terminar em ódio, amizade, namoro, amor ou casamento. Neste primeiro conto Alice Munro joga com a percepção do leitor, fazendo a história mudar de rumo a toda hora.

Começamos com a cena de uma mulher comprando uma passagem de trem para Saskatchewan, no oeste do Canadá, querendo enviar para a cidade um conjunto de mobílias. Em seguida, vemos a mesma mulher em uma loja da pequena cidade em que vive, comprando um vestido que será usado no dia de seu casamento. Porém, não há casamento à vista. Trata-se de Johanna, governanta do sr. McCaulley, dono de um escritório de seguros que não assegura mais nada, que trama abandonar seu patrão para viver com o genro dele, com quem vem trocando cartas amorosas há meses. Mas também não existem essas cartas: o que Johanna lia eram invenções de Sabitha, neta de McCaulley, e Edith, sua melhor amiga, brincando com os sentimentos da governanta. Aos poucos, Munro vai dando ao leitor essas informações, levando-o a imaginar finais diferentes para o conto conforme novos detalhes são adicionados à história: trágicos, cômicos ou românticos.

Os demais contos seguem a ideia de narrativas de acontecimentos cotidianos marcados pelo acaso. No segundo texto, “Ponte flutuante”, Alice conta a história de um casal idoso levando sua jovem empregada para pegar um par de sapatos com sua irmã, uma viagem marcada pela teimosia do homem e da menina, que discordam entre ir e vir de carro pela cidade. A viagem termina com a mulher sozinha, no carro, parada em frente ao trailer da família da moça, andando pela plantação de milho e pensando na sua velhice, na doença da qual se trata e no passado em que quase abandonou o marido.

Em “Mobília de família” uma escritora relembra sua tia, Alfrida, que era colunista do jornal da cidadezinha onde morava quando pequena e que representava, para ela, a imagem da mulher inteligente, madura e independente que ela gostaria de ser. Imagem que muda quando a protagonista vai para a faculdade, e passa a evitar, sem saber o motivo, os encontros com a mulher que costumava admirar.

Em outro conto, acompanhamos uma mulher tentando preparar para o marido, um ateu convicto, o velório menos religioso possível, lidando racionalmente com sua morte – um suicídio já planejado – e evitando qualquer interferência melancólica, saudosista ou religiosa que seus amigos e colegas de trabalho tentam oferecer.

Há diferentes vislumbres das relações de mulheres com suas famílias, seus companheiros, antigos casos, velhas amigas: há o reencontro, muitos anos depois, de um casal de crianças que compartilharam brincadeiras infantis que foram o despertar de suas vidas amorosas; duas meninas criadas como irmãs se revendo depois de uma delas ter fugido com o vizinho, um homem mais velho. Apesar desse foco nas protagonistas femininas, há uma história contada pelo ponto de vista de um homem, que vê sua mulher se deteriorar em uma casa de repouso esquecendo-se da vida de casados e criando laços afetivos com outro interno. Enfim, são histórias corriqueiras, porém marcantes por mostrarem como essas personagens lidam com o conflito, com as mudanças que pequenos acasos causam em suas vidas, transformando para sempre as pessoas de que costumavam gostar.

Alice Munro fala de sentimentos comuns de maneira intimista, como se suas personagens estivessem se abrindo para o mundo buscando o entendimento. Não há tramas mirabolantes – fora o primeiro conto, que é simples, mas construído de maneira a despistar o leitor –, mas há histórias sobre como as pessoas reagem umas às outras, como elas mudam com o passar dos anos, evoluindo, seguindo o curso da vida sem se arrependerem dos seus atos. São sentimentos difíceis de explicar, como, por exemplo, a maneira com que ficamos indiferentes a uma pessoa que antes amávamos, sem uma aparente causa para esse afastamento. Com seus contos Alice mostra que a vida simplesmente acontece sem você saber exatamente como, tendo a opção de apenas seguir o seu fluxo.

 

Havia um perigo sempre que me encontrava em terreno familiar. O perigo de enxergar minha vida através de outros olhos que não os meus. Enxergá-la como um rolo de palavras cada vez mais como um arame farpado, intrincado, confuso, desconfortável – contra o pano de fundo das ricas realizações, das comidas, das flores, das roupas tricotadas, da domesticidade de outras mulheres. Ficou cada vez mais difícil dizer que valia o aborrecimento.
Valia meu aborrecimento, quem sabe, mas o quanto ao dos outros?

 

As personagens deste livro, embora tenham histórias e panos de fundo diferentes, têm em comum os seus desejos mantidos em segredo. Elas cometem pequenos pecados irrefreáveis, traições que não abalam completamente seus sentimentos ou relações, mas as fortalecem. Relatam suas reações a um desejo que, se não fosse saciado, causaria arrependimento e dor ainda maior. Assim, os contos contêm esse tom confessional por revelarem ao leitor aquilo que as personagens escondem de suas famílias, amigos ou companheiros – seja uma pequena traição durante um reencontro com um antigo amigo, seja a omissão de uma visão de mundo diferente para evitar algum conflito.

Ódio, amizade, namoro, amor, casamento foi uma boa leitura de início de ano. Há tanta coisa em comum na vida de todos, tantos detalhes que, de tão corriqueiros, não sentimos a necessidade de pensar mais a fundo sobre eles, que ver isso tudo representado pela literatura de Alice Munro é ir um pouquinho mais além na compreensão de como nos relacionamos com quem está, ou esteve, próximo da gente. Apesar do título se referir a uma brincadeira infantil, ele representa bem a passagem que os contos de Alice faz por essas etapas da vida.