Ela é um filme com subtítulo bastante evocativo: no cartaz, embaixo do pronome que dá nome ao filme, lê-se: “uma história de amor de Spike Jonze”. Uma história de amor do responsável por Quero ser John Malkovich e Adaptação. Uma história de amor entre um homem e seu sistema operacional, uma espécie de Siri mais evoluída. Uma história de amor, portanto, esquisita, exótica, fora do usual.

O cinema de Jonze é de fato estranho, suas narrativas operam em uma espécie de espaço surreal, de dimensão em que o concreto e o possível tornam-se flexíveis. Mas é fácil esquecer que, em sua atmosfera de sonho, o diretor fala do que é profundamente concreto para seus personagens. Talvez Onde vivem os monstros seja seu trabalho em que isso se torne mais claro: a ilha repleta de seres impossíveis e a viagem fantástica nada mais são do que metáfora para a experiência muito real de crescimento e amadurecimento de Max.

Ela é exatamente isso, uma narrativa impossível, pelo menos nesse momento da história, para falar de algo perfeitamente cotidiano. Não se trata de um filme sobre um relacionamento bizarro, muito pelo contrário, é sobre tudo que há de mais universal, humano e comum no amor.

É verdade que mesmo o impossível não parece assim tão impossível: quanto tempo até nossos celulares serem capazes de emular perfeitamente um ser vivo? Quanto tempo até que eles sejam realmente seres vivos? Porque Samantha é viva, real, concreta, ela apenas não tem um corpo. Samantha é quase um Pinóquio do século XXI, exceto que ela já é uma menina de verdade.

Uma menina de verdade que é apaixonante, divertida, curiosa e até um tanto neurótica. Se ao longo do filme fica cada vez mais claro que a personagem não é humana, ela é, sem dúvidas, viva e real. Contudo, sua trajetória passa de imitar aqueles que a criaram para descobrir seu verdadeiro ser, abandonar a sensação de ser simulacro para tornar-se um ser, sem corpo mesmo e sem vontade de ter um.

É hábil e sensível a forma como Jonze estabelece o paralelo entre Samantha e Catherine, a esposa anterior de Theodore; também ela cresceu para longe dele, encontrou a si mesma e já não coube na relação. De novo: não é sobre um caso de amor improvável, é sobre a profunda universalidade das relações humanas e dos nossos movimentos internos.

Catherine o acusa de não ser capaz de lidar com relacionamentos verdadeiros e refugiar-se em um computador. Se a premissa não é verdadeira (que Samantha não é real), a acusação talvez seja: não é porque Samantha não existe enquanto corpo que o relacionamento é fácil, mas porque ela existe apenas voltada para a vida de Theodore. Conforme a personagem ganha vida, adquire interesses e passa a existir mesmo quando o protagonista não está olhando, ele se sente deslocado, ameaçado e consideravelmente menos confortável. Theodore de fato não sabe lidar com relacionamentos verdadeiros, em todas as suas nuances e variações e no contato com um ser que é totalmente separado dele, mas talvez valha perguntar: quem sabe?

Spike Jonze não julga seus personagens, ele os apresenta como essencialmente falhos, deficientes, problemáticos. Humanos. Foi dito muitas vezes que a atuação excepcional de Scarlett Johansson faz o filme e há verdade nisso, há uma infinidade de sutilezas em sua voz e uma vivacidade cativante. No entanto, o trabalho de Joaquim Phoenix não é menos importante, a naturalidade e a contenção de sua atuação são notáveis; seu Theodore é dotado de uma sensibilidade profunda, de uma vulnerabilidade que permite que ele escape a todos os clichês do escritor amargo com dificuldade de relacionamentos que precisa de uma manic pixie dream girl, e torne-se apenas um ser humano extremamente ferido e confuso. Como quase todos nós.

A solidão, no início do filme, é brutal. Theodore aparece sempre sozinho em plano, cercado por formas brancas, assépticas e quadradas. Algumas pinceladas de cor parecem quase irônicas, uma alegria forçada, que os personagens não têm. À medida que Samantha entra na vida do personagem as cores tornam-se menos isoladas, preenchem a tela de forma mais uniforme, menos agressiva.

Apesar da sensibilidade narrativa, Ela esbarra em clichês de composição: a fotografia lavada, com ares de polaroid; essa construção das cores; a oposição entre o mundo futurista e minimalista, de grandes espaços abertos e vazios, onde Theodore habita agora, e o apartamento pequeno e repleto de coisas, colorido e orgânico, onde ele viveu com Catherine. A cena da praia, toda amarelada, com flares da câmera e mocinhas de biquíni retrô parecem um checklist hipster. Visualmente, Jonze já foi melhor. Onde vivem os monstros e quero Ser John Malkovich souberam utilizar uma série de sutilezas de cor, luz e textura para habitar seus mundos. Ela é uma bela narrativa em um visual um tanto estéril.

Uma das poucas escolhas visuais que acrescentam é a perda de identidade de Los Angeles. É apenas quando os personagens comentam a respeito que sabemos que o filme se passa na cidade – até então era lugar nenhum. Lugar nenhum e tempo nenhum para uma história de amor que já soa um pouco como uma fábula, embora no fundo, tenha muito pouco de mágico.

O maior mérito de Ela é ser, apesar de toda roupagem hipster, bastante cru. Não é difícil reconhecer pitadas da vida pessoal do diretor, que foi casado com Sofia Coppola, e mesmo paralelos com Encontros e Desencontros, embora a solidão de Coppola seja mais agonizante, mais desesperançada. Jonze não tenta disfarçar que está ali, como não tenta fingir que o amor é algum tipo de magia sobrenatural que recai sobre os personagens e faz com que tudo automaticamente funcione. Muito pelo contrário. Ele é corajoso ao falar de relacionamentos onde o amor não é suficiente e lembrar que dividir a vida com alguém, o grande tema do longa, é algo sofrido e complexo.

Ela é uma história de amor de Spike Jonze: uma história de amor improvável para falar do que existe de mais provável. É um filme honesto, delicado, de uma sensibilidade abundante e que por isso mesmo consegue se manter otimista sem ser ilusório. Como diz Amy, a melhor amiga do protagonista: se apaixonar é um tipo socialmente aceito de insanidade. Jonze não quer fingir que vai dar certo, mas não quer perder as esperanças.

Dentro da reflexão a respeito da realidade de Samantha, da possibilidade de sentimentos contidos em uma voz sem corpo, há quase uma ironia. Afinal, quantos sentimentos estão em simples imagens que se movem a 24 quadros por segundos? Ela é isso, um filme vivo de sentimentos.