Miss Violence começa com uma festa infantil: um bolo, garotas loiras em vestidos de cor pastel correndo e brincando em volta da sala, balões. Lentamente a câmera se afasta da festa e acompanha Angeliki, a aniversariante, toda vestida de branco, em direção à sacada. Ela então olha para o espectador, sorri desafiadora e se joga.

Alexandros Avranas lança então seu filme como um desafio: o sorriso de Angeliki torna o espectador seu cúmplice e ao mesmo tempo o acusa. Algo acontece ali, algo está obviamente errado com aquela família, mas todos, amigos, assistência social, professoras, parecem cegos. Angeliki, a protagonista que sai de cena nos primeiros segundos de filme, convida o espectador a ver.

A câmera de Avranas está quase sempre na altura dos olhos de uma garota de 11 anos e boa parte do seu filme é feito em subjetivas, transformando o apartamento de três quartos, onde quase tudo se passa, em um labirinto, ou melhor, nas estranhas de um animal assustador. Há uma constante sensação de claustrofobia e soterramento, como se aquele apartamento de classe média em Atenas estivesse quilômetros abaixo da terra.

E de alguma forma, para suas habitantes, ele está. Myrto e Alkimini vivem um inferno que vai, aos poucos, se descortinando para o espectador conforme os habitantes dele lhe são apresentados. Myrto é adolescente, Alkimini uma criança de 8 ou 9 anos, elas vivem com Eleni – a quem Myrto trata de irmã, mas Alkimini de mãe –, o pai e uma avó. É na fala das garotas que começam a se descortinar as estranhas e suspeitas relações familiares.

Avranas fornece logo nos primeiros minutos todos os elementos para que a história de incesto e escravidão seja compreendida, mas ele não a revela explicitamente até quase uma hora de filme. Ao fazê-lo, ele sustenta o desafio de Angeliki: você pode ver, mas talvez escolha não fazê-lo, talvez se decida que o que parece estar acontecendo é terrível demais e você deve estar enganado, talvez decida que não é seu problema. Elementos suspeitos surgem o tempo todo na frente dos assistentes sociais que passam a frequentar a casa para investigar o suicídio – estão no comportamento de Myrto na escola, na quase catatonia da avó –, ainda assim, ninguém faz nada.

O tensão do filme se coloca entre as visitas da assistência social, que tentam investigar o suicídio de Angeliki, o pai que jura que tudo não passou de um acidente, e o desespero de Myrto para sair da situação. Eleni e a avó passeiam pelo filme quase como zumbis, e Alkimini é pouco mais que um cordeiro para o abatedouro. No entanto, conforme a história avança, a tensão vai se mostrando cada vez mais impassível: a única saída foi a adotada por Angeliki, quando a irmã mais velha lhe contou o que a esperava.

Os últimos anos têm visto uma onda que pode ser denominada de “novo cinema grego”: filmes de alta experimentação formal que tratam das mudanças na sociedade grega e, principalmente, da crise econômica. Todos Os Gatos São Brilhantes e O Garoto Que Comia Alpiste (candidato grego ao Oscar de 2014) são exemplos, mas o título mais famoso dessa safra é sem dúvidas Dente Canino. A história de incesto, estupro e isolamento revestida de humor negro chegou a ser indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro e colocou o cinema grego no mapa. O filme chamou atenção por não ser inteiramente dominado por seu tema, ele era desenvolvido com um olhar distanciado e um formalismo frio.

É impossível não compará-lo a Miss Violence: ambos falam de incesto e encarceramento familiar usando uma rigidez técnica que distancia a tragédia. Os planos de Avranas são matemáticos, duros, sempre emoldurados por formas geométricas do cenário. A paleta de cores é uniforme e adocicada, repleta de tons femininos e infantis, o que vai ganhando um gosto de ironia amarga conforme o longa avança. As atuações são contidas, mínimas, realçando a sensação de prisão dos personagens.

O formalismo e a rigidez fazem muito por filmes como esses. Ao apresentar a coisa sob uma ótima fria, os diretores evitam o melodrama e o excesso de manipulação emocional que enfraqueceria suas obras. Da forma como existem, Miss Violence e Dente Canino são de uma força extraordinária, relatos crus e sem disfarces de um horror que nos acerta nas vísceras.

É importante considerar também que esse novo cinema vem do lugar onde as artes cênicas são mais antigas. Avranas não nega a influência da tragédia grega e ela aparece de duas formas diferentes. Nas peças antigas os personagens são empurrados a ações condenáveis (por exemplo, o sacrifício de uma filha pequena) pelas circunstâncias ou pelos deuses, não há qualquer autonomia humana. Em Miss Violence o pai poderia acusar a crise econômica e a dificuldade financeira por enganar o sistema de assistência social e prostituir a filha pequena, mas seu genuíno prazer na violência que inflige é inegável. São as meninas as personagens trágicas, sem qualquer saída exceto a morte.

A crise econômica não está ausente de Miss Violence, mas ela aparece apenas como comentário passageiro, ou pano de fundo. O tema de Avranas parece ser muito mais o potencial violento e obscuro da natureza humana, o horror dos nossos impulsos quando não colocados em cheque, e dessa forma seu filme, embora hermético e claustrofóbico, acaba se transformando em possível aviso. Ele não desvia o olho do potencial violento e dominador do ser humano, algo importante de se ter em mente em um país que parece à beira de explodir.