Luiz Felipe Leprevost é poeta, ficcionista, ator, dramaturgo, músico e agora sócio de um novo selo independente curitibano chamado Encrenca: Literatura de Invenção, pelo qual publicou no final de 2013 seu mais recente livro, Salvar os pássaros. A obra é um arsenal de narrativas ficcionais desprovidas de um formalismo estético, onde a linguagem é a grande força ancorada em seus textos, que, se o autor não gosta que sejam apontados como herméticos, soam, em alguns momentos, no mínimo desconcertantes. De fato, o efeito de Salvar os pássaros se completa muito mais quando lido em voz alta do que em silêncio.

Neste projeto ficcional de breves narrativas experimentais e de seio metalinguístico, as vozes orquestradas de suas personagens aparentam, muitas vezes, querer expandir seus discursos quase como num ápice histérico de loucura ou devaneio, ou como se estivessem vomitando as próprias vísceras, desfigurando o senso comum, onde a palavra, a frase e o verso recriam novas formas de significação inaugurando um novo mundo onde a criatividade sem limites de seu autor se faz valer, sem que se abandone seu traço poético — este explicitamente entranhado nas páginas de sua antologia.

Em entrevista exclusiva ao Posfácio, Luiz Felipe Leprevost falou sobre o seu novo livro, o selo Encrenca e suas experimentações estéticas com a linguagem.

 

É impressão minha ou o seu livro surgiu a partir de versos, frases, pequenas estórias e esboços soltos que, no fim, o escritor foi reunindo e assim, respectivamente, formando Salvar os pássaros?

Especialmente os capítulos “Notas para um livro bonito”, partes 1 e 2, nasceram assim. Resultam de experiências que fui lançando em meu mural do Facebook. Sentia a resposta dos leitores e voltava a elaborar, se necessário. Foi um processo novo pra mim. E arriscado. Os textos mais longos, por sua vez, não surgiram desta forma, são contos que, por sua proposta narrativa mais convulsa e entortada, esperaram tempo razoável na gaveta, até que eu encontrasse o conjunto certo, no momento certo, pra aparecerem no livro.

 

Em Salvar os pássaros vejo que há uma preocupação não exatamente com a estória ou o enredo em si, porém na junção das frases e palavras, nos sons e em seu próprio ritmo, no protagonismo linguístico que o livro se sujeita em fundir no cerne de sua estrutura textual, que, por sua vez, me pareceu um tanto quanto hermética em certas passagens. Estou errado?

Não acredito no conceito de hermetismo pra arte, ao menos não no modo pejorativo como ele é em geral usado. Creio que toda obra tem especificidades e, dentro delas, algumas exigências pra que o diálogo com o leitor se faça. O sucesso de tal diálogo jamais deveria ser responsabilidade exclusiva da obra. Se vou assistir a um filme de Lars Von Trier, por exemplo, sei que terei de trabalhar. Ele fez sua parte, faço a minha como espectador. De todo modo, acredito que todos estamos preparados, cada qual com o seu repertório (e ser humano num mundo de humanos é o maior deles), pra obras de exigência máxima. Mesmo os que não estamos preparados, sei que estamos, basta ir de encontro. Ou a arte (a vida) não seria esta coisa incrível, misteriosa, inesgotável, capaz de tudo.

 

Há também a questão da figura feminina no livro. A obra em si, ainda quando em processo, tinha esse intuito de evocar a figura da mulher em seus contos ou foi algo que surgiu às cegas?

Talvez tenha surgido às cegas. Só depois me dei conta. Pode ser que tenha sido bem parecido com o modo como o meu último amor tomou a minha vida… Eu estava completamente cego quando ela apareceu, mas pude cheirá-la, apalpá-la dentro do escuro, pude olhar bem o seu fundo e ainda assim jamais conhecê-la por completo. E está tão claro que eu a amei tanto, que só pude estar cego e às vezes feliz, às vezes desesperado, chegando mesmo a perder a razão. Assim é com a literatura, talvez… Agora que o livro foi publicado, já não sei mais absolutamente nada sobre ele. Mas, ora, tampouco sabia antes. Estou respondendo estas perguntas completamente às cegas, com evasivas, será? Enquanto eu escrevia, sabia ao menos uma coisa: que queria, que precisava escrever, por mais que ignorasse de onde vinha e pra onde seguiria. E pode sim que isso tenha que ver com o amor.

 

Salvar os pássaros é o título de um seus contos e, particularmente, um tanto quanto sugestivo e instigante. Até chegar ao conto propriamente dito, o título por si só me sugeriu, na verdade, a coisa da libertação estética e da elasticidade com a criação, já que estamos tratando de uma literatura extremamente experimentalista. No próprio conto que dá título ao livro o escritor não faz o uso de vírgulas. Queria que falasse mais sobre isso.

Este texto foi escrito pra ser levado ao teatro. Era uma peça. Logo, a oralidade estava fundamentando sua escrita. Escrevi a pedido de uma atriz com quem já trabalhei muitas vezes no passado recente. Ela me pediu uma peça que falasse de amor, e Salvar os pássaros foi o que consegui. A atriz acabou por entender que não era exatamente o que ela queria encenar. Sou ansioso, sabe. Fiquei angustiado, não consegui esperar ele ser levado ao palco, então resolvi manipular um pouco sua estrutura e colocar no livro. E aí eu soube que ele era a principal fala do livro, porque ousava entrar fundo, de modo totalmente subjetivo, claro, no que me parecia ter a ver com a histeria feminina. Histeria que foi preciso que eu sentisse na própria carne, escrevendo.

 

Como surgiu o interesse em publicar o livro pelo selo Encrenca: Literatura de invenção? Seria uma forma de resistência a um tipo de literatura mercadológica que se tem feito no Brasil nas editoras mais tradicionais?

Meu irmãozinho e sócio, Otavio Linhares, pensa mais sobre estas questões de afronta e resistência mercadológica. Eu só quero escrever o melhor que posso e publicar (agora também como editor) o que me parece importante que seja publicado. Eu sentia que o livro do Linhares, Pancrácio, era um desses. Então enchi o saco dele pra ele ir atrás de editoras. Conversamos com uma ou duas, mas não tínhamos tempo pra esperar. Havia uma certa urgência, entende, então eu disse: vamos criar nosso próprio selo. Estavam por ali o Thiago e o Frede Tizzot, nossos parceiros também noutros projetos. Então, os quatro, começamos a traçar a linha conceitual do selo. Dado o nosso desejo de apostar em literaturas de invenção, pareceu-nos inescapável homenagear o mestre Manoel Carlos Karam. Assim nos apropriamos do nome de um de seus incríveis romances, e o selo Encrenca nasceu.

 

Notei que o seu livro pode ser lido não necessariamente numa ordem cronológica, que em nada se perde o seu sentido. Ele me evocou também uma questão de um jogo metalinguístico com as palavras, e que me fez lembrar alguns escritores como James Joyce, Clarice Lispector, Julio Cortázar, Paulo Leminski e Hilda Hilst, que trabalhavam nessa linha estética da não formatação em estruturas tradicionais do gênero literário dentro do campo da prosa. Gostaria de saber sobre suas influências e como o escritor enxerga a questão da linguagem ser a grande protagonista de seu livro?

Adoro estes cinco autores que você cita. Mas não sei medir níveis de influências, nem deles nem de outros. O afago do meu amor achado ou perdido pode me influenciar muito mais que a literatura, quase sempre. Sabe, as formas e o estilo de Salvar os pássaros foram aparecendo ao longo do meu exercício de autoria, isso quando eu ainda nem pensava que escrevia novo livro. Quando notei a transformação que estava se operando, só aceitei e investi sem medo, sem me preocupar se seria compreendido, se era bom ou não aquilo. A linguagem talvez seja a protagonista do livro porque há uma sintaxe usada singularmente, há algo estrutural que problematiza realmente a língua, um certo abuso semântico, pode até que com alguma ousadia. Mas por que fiz isso? Talvez pra tentar sentir e viver diferente, sentir e viver o que nunca antes. Talvez pra proporcionar ao leitor alternativas que não estivessem conformadas com “o de sempre”, com “o mesmo”, que surgissem e proporcionassem aberturas de sensações e percepções. A linguagem é constituidora da vida, né? Não sei bem, não sei, mas talvez tenha sido um jeito de me sentir menos escravo nesse mundo sufocante.

 

No que Salvar os pássaros difere de suas obras anteriores?

Eu era outro quando escrevi as obras anteriores. Fui outro em cada uma delas. Serei outro na próxima. Não enxergo meu processo como evolutivo. Cada texto, cada reunião de textos exige que enfrentemos determinados desafios exclusivos, numa época exclusiva, e que não volta. Por mais experiente que seja o escritor, ele sempre começa do zero a confecção de um livro. Se me permite uma citação, diria que, de um modo ou de outro (e pode mesmo que vai aí, inclusive, alguma alegria), todos os meus trabalhos “me deixaram a impressão de eu ter atravessado um pesadelo voluptuoso” (Pessoa, Livro do Desassossego).

 

Projetos futuros?

Estou trabalhando na segunda novela da minha Trilogia da Geada. E se contorce igual a um dragãozinho ferido (ed. Arte & Letra) foi a primeira. A segunda, Dias nublados, deve sair no primeiro semestre deste ano.

 

Em Rubricas com algumas vozes misturadas, o escritor se autodefine: “Luiz Felipe Leprevost não é Felipe Leprevost (…) nega quem no que é, afirma o que não quem, não lfl os outros”. Afinal de contas, quem é o Luiz Felipe Leprevost? Um escritor curvado sobre a escrivaninha, ainda que não velho, como menciona no livro (risos)?

Não sei quem sou. Mas faz muitos e muitos anos que a poesia tomou a minha vida. Se não sou poeta, ao menos pode que esteja nisso como o amante inevitável da poesia inevitável.