Dias atrás, me pus a pensar em como não se fazem mais rifas. Daquelas com bilhetes picotáveis ou com nomes de garotas para escolher, em vez de números. Na escola, era comum ouvir alguém perguntar: “quer participar da minha rifa?” Era uma forma de arrecadar dinheiro para todo tipo de empreitada, desde a festa de quinze anos até a reforma da igreja. De repente, lembrei da rifa que um amigo fizera para ajudar nos custos de uma viagem de estudos para a Alemanha. Quase cheguei a acreditar que eu mesmo ganhara essa rifa, antes de decidir desconfiar da lembrança envelhecida.
Até certa idade, parece que tudo cabe na memória, e então subitamente esquecemos. E só sabemos disso pelo pouco que recordamos. O mundo se torna então um campo minado, pronto pra detonar a lembrança do gato que deitava na bacia de metal da escadaria dos fundos da casa da sua avó. Às vezes uma lembrança vem colada a outra, até que se forma uma história bem longa. Por isso, quando ouvimos uma pessoa mais velha, percebemos que às vezes não é só um relembrar, mas um recriar da memória.
Em Luz antiga, último romance do irlandês John Banville1, a rememoração do protagonista, Alex Cleave, começa com uma anágua. Pensar nessa peça, que já foi mais frequente no vestuário feminino, traz a ele a lembrança do “sulco avermelhado no lugar onde o elástico pressionava a carne flexível e prateada da sua barriga e dos seus flancos”. Disso parte a reconstrução de toda a sua experiência com a primeira mulher com que se envolveu. Chamava-se sra. Gray e era a mãe de seu melhor amigo. Alex tinha então quinze anos.
No presente do protagonista, cinquenta anos se passaram. Ele agora é um ator recluso, que se afastou dos palcos depois de razoável sucesso no teatro. Tem com a esposa uma relação de confiança, embora se sintam progressivamente mais distantes desde a morte da única filha do casal. Inesperadamente, Alex é convidado a participar de um filme sobre a vida do pensador Axel Vander, o que, por uma série de coincidências um tanto fortuitas, leva-o a revisitar algumas incertezas a respeito dos últimos dias de vida da filha.2
Alex alterna seu relato entre momentos com a sra. Gray e cenas e reflexões dispersas do presente. A separação não é estanque; há uma contaminação mútua entre os dois períodos. À medida que Alex recupera os detalhes de cada um dos encontros que teve com a sra. Gray, reinterpreta sua relação com as outras mulheres de sua vida. O que representaria aquele primeiro amor comparado à esposa com quem viveu por quarenta anos? Ou em relação à filha? Teria amado a todas com a mesma intensidade?
Quando fala do passado, Banville cria uma narrativa mais consistente. As experiências de Alex são descritas com uma riqueza de detalhes que desperta a confiança do leitor na realidade dessas lembranças. A primeira relação sexual com a sra. Gray, por exemplo, mostra a habilidade de Banville para criar cenas com poucos elementos, mas bem distribuídos, sendo alternadamente explícito e pudico.
Estranhamente, como se buscasse ressaltar a imprecisão da memória, são os eventos do presente que mais falham em intensidade. Suas descrições são vagas. Sua atenção se dispersa entre vários fatos que não são essenciais à história. Seu conhecimento sobre o universo dos artistas de cinema não passa a verossimilhança de quem conhece a matéria em primeira mão. Além disso, sua prosa se torna ainda mais penosamente autoconsciente. Quando o narrador fala algo ingênuo, por exemplo, dobra-se sobre si mesmo e ressalta a própria ingenuidade, como se assim se isentasse: “Pronto, lá vêm essas palavras de novo: amor, paixão […]”.
Alguns atenuantes poderiam ser sugeridos em defesa de Banville. Num primeiro ponto, diria-se que, no universo ficcional, o livro é o diário ou a autobiografia de Alex Cleave. Quem escreveria, portanto, seria o ator sem experiência com as letras, que só consegue se tornar coeso quando dominado pela lembrança. Um melhor conhecedor da obra de Banville talvez possa traçar o limite entre os vícios do autor e do personagem.
O outro ponto diz respeito à posição do livro na trilogia. Publicado em primeiro lugar no Brasil, Luz antiga originalmente fecha a série. Os dois primeiros volumes, Eclipse e Shroud, tratam de eventos cruciais na cronologia interna, como o afastamento de Alex dos teatros e a morte de sua filha Cass. Compreende-se, portanto, que esse presente esteja parcialmente esvaziado.
Atenuantes à parte, Luz antiga é um livro irregular. Tem um estilo lento, tortuoso, que exige a atenção do leitor. É preciso ouvir Alex como a um velho amigo. Alguns momentos serão recompensadores, outros serão apenas tediosos. Ainda assim o efeito geral é positivo, e o livro deverá agradar especialmente aos leitores que admiram as surpresas guardadas em nossos próprios passados.