Às vezes, a gente não se dá conta de que uma expressão que usamos costumeiramente não faz parte do dicionário urbano nem é um bordão popularizado pela novela: é, apenas, uma espécie de piada interna entre você e… bem, você mesmo. É preciso prestar atenção ao momento em que a pessoa com quem se conversa faz cara de interrogação – afinal, ninguém é obrigado a entender tudo o que se passa na sua cabeça.
“Teste do abandono” é um exemplo. Uso a expressão sem nem pensar desde que li um artigo sobre a Síndrome de Estocolmo dos romances longos e passei a testar os livros mais grossinhos que encontrava na caixa de correio ou nas estantes da biblioteca pública1. “Síndrome de Estocolmo” (ou Stockholmssyndromet em sueco), vá lá, é mais fácil de entender – tem até artigo na Wikipédia. Resumindo o que Mark O’Connell diz no artigo “The Stockholm Syndrome Theory of Long Novels”, livros longos costumam nos causar tantos problemas quanto os sequestradores que, quando finalmente nos oferecem algo bom ou de fácil apreensão, nós confundimos com amor – ou passamos a achá-los muito melhores do que são realmente.
Como funciona o teste? Basicamente, o refém – no caso, o leitor – é libertado. Se já não é lá muito fã de ler, você pode deixar o livro de lado por uma semana, aproveitando o tempo extra para ver alguns filmes indicados pelo Netflix, fazer 30 minutos diários de esteira ou participar de uma aula para iniciantes na arte da cerimônia do chá japonesa. Se você é leitor inveterado, é hora de pegar um livrinho mais curto – um “furador de fila” – enquanto deixa o outro de molho.
A partir de quantas páginas um livro é considerado longo – e, portanto, suscetível ao teste? Antigamente, eu diria mais do que 500 páginas, no mínimo. Hoje, já não considero 300 páginas como devorável-em-uma-sentada como antes. Isso vai de cada pessoa: 200 podem ser páginas demais para alguém2.
Por quanto tempo se abandona? Ah, isso varia. Geralmente, uma semana é suficiente para dar uma respirada. Às vezes, um mês ou dois. Tem livros que não tiro da estante há mais de dois anos e não considero abandonados, apenas esperando o momento certo pra que a leitura seja retomada.
A pergunta final é: pra quê?3 Tenho algumas respostas:
– Pra saber quais leituras priorizar: o abandono temporário torna a Síndrome de Estocolmo mais perceptível. Em uma semana, dá para descobrir se você lia porque o livro valia a pena ou porque “depois de 300 páginas, é melhor que ele seja bom mesmo!”. Às vezes, você até percebe se o livro é bom-mas-não-agora. Então decide se é proveitoso continuar ou não.
– Pra não fazer papel de bobo4: não sei quanto a vocês, mas já percebi que há muitos livros que, assim que lidos por inteiro, parecem ótimos, e que, com o passar dos dias, vão piorando – até que você nem lembra mais a razão de ter indicado aquilo a todos os amigos. Acredite: o teste do abandono faz você perceber isso mais rápido.
– Pra deixar o livro respirar: um bom livro costuma ser beneficiado pelo regime de dedicação não-exclusiva à sua leitura. Alguns, inclusive, recomendam essa pausa – Umbigo sem fundo, de Dash Shaw, é um exemplo. As experiências do período de abandono – sejam outras leituras5, sejam caminhadas no parque – podem dar novo fôlego à obra em questão, inclusive acrescentando-lhe camadas antes não vistas.
– Pra se arrepender: quando o livro for bom mesmo, daqueles que o farão se perguntar “por que fiquei tanto tempo sem te ler, amoreco?”, o prazer da leitura retomada será inenarrável – portanto, nem tento narrar ou descrever. Só não vale fingir que faz o teste do abandono quando, na verdade, se está economizando um livro – lendo mais devagar ou tentando esquecer ele em casa para que dure mais6.
Um livro representativo desse último caso – ao menos comigo – foi A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan. Contudo, outro livro da mesma autora sofreu com o teste: quando voltei a ler Olhe para mim, queria saber apenas da Charlotte-modelo-que-sofreu-um-acidente, já não ligava para os outros personagens7.
Este ano, apliquei o teste em alguns livros – nas notas de rodapé, dá pra ver como se saíram: As lembranças, de David Foenkinos8; Uma teoria provisória do amor, de Scott Hutchins9; A elegância do ouriço, de Muriel Barbery10; O segredo do meu marido, de Liane Moriarty11; Condenada, de Chuck Palahniuk12; Eu te amo, Philip Morris, de Steve McVicker13; Aristóteles e Dante descobrem os segredos do Universo, de Benjamin Alire Sáenz14; e Caninos em família, de Kevin Wilson15.
Só não posso dizer que o teste do abandono é novidade. É muito parecido, por exemplo, com o “deixar rolar” que todo mundo recomenda após um bom primeiro encontro e um segundo ainda melhor. Você alimenta o seu amor com o melhor pão-de-mel do mundo, fala para os amigos que o coraçãozinho gelado voltou a bater, que o improvável voltou a acontecer: está apaixonado. Até que, depois de um tempo (e um encontro nada especial), começa a duvidar da reciprocidade e se não buscou ver sinais onde não havia – quanto mais insistir, mais procurará indicativos de que tudo não foi uma imensa perda de tempo. E, às vezes, foi – fazer o quê?
Pois é. Não há nada de novo debaixo do céu.
* * *
Três livros que passaram (com louvor!) no teste do abandono.
– A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan.
– Associação judaica de polícia, de Michael Chabon.
– Laços de sangue, de Michael Cunningham.
- Não, o teste não está lá, pelo que lembro. Eu que inventei, acho. ↩
- Eu me lembro especialmente de um livro de 176 páginas que não sobreviveu ao teste. Eu sei: 176 páginas é pouco, bem pouco. Mas o livro em questão era chato, bem chato. E eu meio que tinha me comprometido a resenhá-lo. Lia 10 páginas e não aguentava. Relia outro dia, pra ver se pegava o embalo, e nada. Ficava feliz nos dias em que pensava tê-lo perdido e mortificado quando o encontrava novamente, seja caído atrás da escrivaninha, seja atrás da salada de frutas, no fundo da geladeira. Certa noite, consegui chegar ao segundo capítulo – o livro miraculosamente pareceu-me instigante por um capítulo inteiro, meus amigos! No entanto, na página seguinte havia outro narrador, mais chato que o anterior. Resultado? Emprestei-o a uma amiga, curiosa para lê-lo, com a seguinte dedicatória: “se você gostar, é teu!”. ↩
- “Pra quê?”, obviamente, é uma abreviação de “Para que, além de ser uma idiossincrasia à qual você tem TODO o direito?”, uma outra forma de perguntar “Para que nos contar a respeito disso?”. ↩
- Nada contra fazer papel de bobo – inclusive faço, e muito. ↩
- Cuidado para não confundir os livros. ↩
- Algo que também pratico. Não custa lembrar: eu comecei DUAS vezes a ler Juliet, nua e crua, de Nick Hornby, e (de tanto gostar e querer economizar o livro para que não acabasse logo) o abandonei DUAS vezes. ↩
- O livro continua bom, pelo menos. Melhor que O torreão, com certeza. ↩
- O livro nem é lá muito longo, mas previ tédio. Enganei-me. Errei feio, errei rude. Foenkinos se tornou um dos meus autores favoritos. ↩
- Abandonei bem no começo. Arrependi-me de ter feito isso. ↩
- O abandono serviu para que eu aprendesse a ligar menos para a parte filosófica do livro e percebesse que a história podia ser cativante. ↩
- Achei que leria e trocaria depois por um livro de que gostasse mesmo – por isso, mantinha o selo de troca do livro. Pensei que, depois de saciada a curiosidade, seria uma leitura besta. Abandonei tão logo descobri “o segredo do marido”. Quanto retomei a leitura, o livro me conquistou de tal forma que (1) não o troquei e (2) dei de presente para minha tia leitora. ↩
- Não é o melhor do autor, mas é um YA que representa bem a voz dele. Deu vontade de ver The Breakfast Club só para poder comparar com o que ele fez nesse livro. Não gostei do imenso gancho final: é como se fosse um novo teste do abandono até que lancem Doomed por aqui. ↩
- A leitura fluiu como se eu não tivesse abandonado. É bastante diferente do filme que inspirou. ↩
- Abandonar por 15 minutos vale? Não, né? Próximo! (p.s.: adorei) ↩
- Orgulhei-me de conseguir abandonar esse por 2 dias INTEIROS. Tentei ler só um pouquinho de cada vez, quando “desabandonei”, mas não deu. <3 ↩
Excelente artigo! Não é muito minha ideia de como ler um livro, então aproveito pra deixar um contraponto:
http://www.stumbleupon.com/su/2sfRzU/ebooks.adelaide.edu.au/s/schopenhauer/arthur/essays/chapter3.html
É um artigo do Schopenhauer sobre como ler e o que ler. Obviamente não consigo seguir muito do que está aí.
Hahaha. É só uma ideia.
Tentarei ler. Curti um livro do moço, mas ainda lembro do gosto amargo do Eudemonismo dele. rs
Abs.
Não sei se consigo fazer isso. Se passar 15 dias sem ler o livro vou ter que fazer um super recapitula. Até pouco tempo atrás não conseguia abandonar nem os ruins. Hoje já me permito. Tenho mais o que ler.
Vish, às vezes também tenho que fazer algo assim. Mas, em geral, minha memória é bem boa. Eu acho importante saber abandonar DE VEZ os ruins. (Mesmo que você deixe como “lendo” pra não ferir os sentimentos de ninguém.)
Nossa, quando li “A elegância do ouriço”, voltei depois de ler um “furador de fila” e disse, vamos lá…. e depois pensei: nossa, ainda bem que voltei!!! Quase perdi uma bela leitura;
Outros eu abandonei e não voltei nunca mais. Antes não conseguia fazer isso. Hj eu faço,, pq com tanta coisa na lista de leituras, não dá pra perder tempo com algo que não me agrade.
Abraços!
Resenharei esse livro eventualmente. Eu comecei a ler e quase abandonei: só insisti porque amigos muito bons me tinham indicado, sem contarem muito do enredo. É realmente uma bela leitura. Sou mais fã dos capítulos escritos pela guria.
Sim, tem que saber abandonar. Não vale a pena se apegar a tudo. Sim, tem coisas que, só depois da gente insistir muito, nos farão ganhar o presente final. É só questão de saber se quer mesmo esperar por uma possibilidade.
puxa, acho complicado deixar um livro grande por alguns dias. até 300, 350 páginas acho possível. mas certa vez li 200 pgs. d’o idiota, do dostoiévski, e depois de duas semanas sem tocá-lo confundi todos aqueles nomes russos, tive q voltar às primeiras páginas, hahaha.
Vish. Russos, japoneses, qualquer língua com nomes estranhos: é bom não abandonar mesmo. Ou fazer uma planilha com os nomes de personagens, pra não se perder (mais ou menos como o povo costuma fazer com o Cem anos de solidão).
Abs