Tenho uma predileção por livros em que, aparentemente, nada acontece. São só personagens andando para lá ou para cá, às vezes nem isso. Um livro pode se passar inteiramente em uma sala, em um sofá, em uma cama – como a história da literatura já mostrou várias vezes –, só se alimentando do caos da mente humana. Quem fica muito tempo parado reconhece isso. Não é fácil lidar com os próprios pensamentos, às vezes. A sensação de que “nada acontece” é só isso, uma sensação. A verdade é que tudo acontece, de forma desordenada e sem sentido. NW, o último romance de Zadie Smith, passa essa sensação em vários momentos. Suas personagens quase não ultrapassam os limites do bairro de Kilburn, na região Northwest de Londres (daí o título, NW), e suas vidas se cruzam a todo o instante, mas de uma forma tão corriqueira, usual, que não parece que algo realmente vai acontecer.
Neste livro Zadie Smith concentra a narrativa em quatro personagens: Leah Hanwell, Natalie Blake, Felix Cooper e Nathan Bogle. Mas podemos dizer mesmo que as principais são Leah e Natalie, melhores amigas desde a infância, em quem Zadie concentra a maior parte do livro. Nathan cresceu no mesmo conjunto habitacional e estudou na mesma escola que as duas, e Leah sentia um queda por ele quando tinha 10 anos de idade. E Felix é só mais um morador da região que cruza com os três de maneiras distintas. Apesar de terem crescido no mesmo lugar, os quatro construíram vidas muito diferentes, e é isso o que todo o romance mostra: pessoas destoantes se cruzando em algum momento, passando pelo mesmo desafio de sobreviver em uma cidade que às vezes parece acolhedora, outras vezes estranha, construindo suas identidades ou tentando escapar delas.
Dividido em cinco partes, o romance começa com uma tarde de calor na casa de Leah. O ponto de partida é a visita de uma estranha garota, Shar, que bate desesperada à porta da ruiva pedindo dinheiro para visitar a mãe doente no hospital. Leah não percebe o golpe da menina drogada para conseguir dinheiro, lhe dá 30 libras imaginando que está ajudando, um ato de ingenuidade confundida com altruísmo. Dias depois, após ser repreendida pela mãe, pelos amigos e pelo marido, Leah ainda cruza com Shar em vários lugares de Kilburn, ora ignorando sua presença, ora exigindo o dinheiro de volta.
Mas este não é o grande drama de Leah: é durante essas semanas que ela decide, novamente, não querer ser mãe, apesar da esperança de seu marido de que ela engravide. Leah é bonita, inteligente, tem um bom emprego em que ajuda pessoas necessitadas, mas é incapaz de se sentir plena ou preparada para enfrentar uma maternidade. À sua vista, a vida de Natalie é muito mais perfeita, bem arranjada e feliz do que a dela.
Isso, no entanto, não passa de uma impressão, tanto para Leah quanto para o leitor. A vida de Natalie (antiga Keisha) transparece sucesso e perfeição desde a juventude. Negra, de família pobre, sempre conquistou boas notas. Sempre foi obediente, fiel à religião, frequentadora da igreja, boa com os pais, a irmã, seu primeiro namorado. Mas igual a Leah, há algo faltando, uma insatisfação que não passa por mais que conquiste novas coisas.
A parte de Natalie é narrada da infância até a vida adulta, como mãe, casada e com filhos, estruturada em centenas de notas curtas que mostram cenas, diálogos e os pensamentos da personagem. Cabe ao leitor juntar todas as partes e chegar a uma conclusão sobre o que está acontecendo, quem é Natalie de verdade. Zadie Smith emprega esse artifício em todo o romance: nada é dito diretamente, são pistas jogadas, palavras-chaves que sugerem ao leitor o que está por vir, ou o que já aconteceu que marcou de maneira profunda a personalidade de suas personagens.
As partes de Nathan e Felix são bem curtas, o que considerei ser uma falha de NW – creio que eles poderiam render um bom material. Mas, curiosamente, eles são os personagens que parecem estar mais satisfeitos com suas vidas. Felix principalmente, e é justamente isso que o transforma no personagem mais trágico do livro. Quase como um “mini-Ulysses” – mas, claro, condensadíssimo –, Zadie fornece uma descrição de um dia em sua vida, do momento em que sai da casa da namorada e vaga por Londres até o início da noite, quando é esfaqueado no meio da Albert Road, prestes a dizer à namorada o quanto a ama e que quer ficar ao lado dela para sempre. (Isso não é spoiler, de forma alguma: é a morte de Felix que o liga a todos os outros três, ou porque estiveram perto do caso ou porque viram na imprensa.) Com Nathan há apenas conformismo com o caminho que escolheu para si: de futuro jogador de futebol a drogado morador de rua. Satisfeitos, apesar de invisíveis.
NW é carregado de melancolia e apreensão, não tanto porque os quatro protagonistas tenham uma existência triste, mas pela forma com que Zadie coloca sua intimidade na mesa. Não há como escapar de quem se é, ou do que esperam que você seja. Ou do que você esperava ser quando ainda era um adolescente tentando se descobrir no mundo. Se descobrir não é apenas olhar a lua cheia e ter uma epifania completa sobre o seu futuro ou o que deve ser feito, desejar ser o que quiser independente das expectativas. Não é tão fácil quando você está indo contra o que o amor da sua vida deseja, o que seus filhos e um marido amoroso esperam da mãe. As coisas não são inteiramente racionais e não é sempre possível racioná-las.
É assim que é NW: as coisas acontecem quando nada parece acontecer.
Eu ainda não sei o meu limite: o quanto precisa acontecer pra eu não julgar que em um livro nada acontece. Prefiro aqueles em que acontecem coisas, creio, mas, assim como um livro cheio de ação pode ser tosquinho por não ser bom em outros aspectos (linguagem, por exemplo), um livro também pode disfarçar muito bem que nada acontece. Lembro-me de “Um homem que dorme”, de Georges Perec, em que o cara fica o tempo todo remoendo os mesmos pensamentos, tomando seu café solúvel, sem sair do apartamento. Genial.
Tô mergulhando em Dentes Brancos, tentando conhecer seus personagens. Tá massa, por enquanto. Me prometi que só leria o novo quando finalmente lesse o velho, que tenho há tanto tempo. Provavelmente lerei NW ainda esse ano.
Acho que o que pode explicar essa sensação é: “cadê a treta?” A treta tá lá, ta acontecendo, tá se formando, mas não vem com aquela carga de dramalhão que te faz pular do sofá, jogar o livro no chão e dançar em volta dele gritando “A-HÁ! A-HÁ!”. A história se forma de um jeito bem sutil, quase entediante, você vê as coisas acontecendo, meneia a cabeça e diz “Hmmm”. Saca?
😛