“No abundaré sobre los peligros que acechan a esta isla, a la tierra y a los hombres, en el olvido de las profecias de Malthus; en cuanto el mar, hay que decir: en cada uma de las grandes mareas he temido el naufrágio total de la isla; en un café de pescadores, de Rabaul, oí que las islas Ellice o de las lagunas son inestables, unas desaparecen y otras emergen. (¿Estoy em ese arcuipiélago? El siciliano y Ombrellieri son mis autoridades).” 1
La invención de Morel é um romance de Adolfo Bioy Casares (1914-1999) sobre um condenado à morte que desembarca numa ilha um bocado enfermo. Emídio Greco (1938-2012), diretor Italiano, faz a sua versão de Bioy. O condenado não tem nome. Na ilha ele encontra construções um tanto estranhas. Uma piscina, um museu e uma igreja (que não se mostra no filme).
Na introdução do livro a que tive acesso, há um prólogo por Jorge Luis Borges (1899-1986) defendendo o livro de Bioy como perfeito, num século em que há primazia de tramas, e que nenhum século teve novelas de tão admiráveis argumentos como The Turn of the Screw, Der Prozess, The Invisible Man, Le voyageur sur la terre e “como esta que há logrado en Buenos Aires, Adolfo Bioy Casares”2. Se o temor de transcorrer em prematuras ou parciais revelações o proíbe de examinar o argumento e as muitas sabedorias da execução de Casares, não julgo eu poder falar muito sobre o argumento da(s) obra(s).
(Talvez, apenas talvez – tentarei aqui não entregar o ouro –, esta seja um crítica que deva ser lida depois de ler o livro ou ver o filme.)
Cabe aqui apenas comparar ambas as obras.
O realmente difícil (julgo eu) foi ter transposto um livro narrado em primeira pessoa – o livro é o diário do condenado, que à morte escapou; não se sabe até quando escapará, já que ela sempre lhe anda aos tornozelos –, que se converte num filme sem narração. E consegue, ainda assim, passar as sensações do próprio condenado ao espectador.
O medo de perseguição, de captura e de ser afogado pela maré, que por horas sobe a seu leito, vão se convertendo em medos metafísicos. No filme perdemos suas divagações textuais ricas, embora transpostas até onde possível para a tela. Elas lá estão assombrando. Divagações sobre Morel (que construiu ali seu museu), Malthus, preocupações mundanas e filosóficas: as divagações e a própria escrita do condenado são únicas e incomparáveis. O que não tira o mérito do filme, que traduz para seu dispositivo fílmico coisas como questões específicas e pontuais de que a literatura não dá conta, naturalmente. E vice-versa.
Cada versão se completa. As divagações do condenado em seu imaginário (livro) se tornam suas divagações pelas paisagens desoladoras (filme). O medo descrito em primeira pessoa se torna um medo percebido pelo espectador através do dispositivo fílmico. No filme, quem divaga é quem assiste.
Cremos (como crê o condenado em suas divagações, mas sem sua interpelação oral) que primeiramente ele delira ao ver essas pessoas; a situação do prisioneiro, pelo rosto que vemos, é, realmente, um tanto de enfermo, um farrapo humano (e isso não são os fantasmas?). As descrições de por que essa gente lá está, ou ele lá está, vão se sucedendo e nos fazendo crer à maneira como ele descreve no livro. Não come direito, esteve muitos dias no mar, as alucinações lhe abatem, etc, etc. Cremos serem eles próprios fantasmas. Depois cremos ser o condenado à morte um fantasma. Depois cremos ser uma espécie de purgatório de Dante onde ele vive num círculo de morte especulável, de quem é o morto da vez. Suas especulações nos fazem especular até demais. Quem sou eu para especular sobre o fantástico? Ainda assim, as especulações são tudo o que se tem.
As paisagens, a mise-en-scène, dirão alguns, lembra a mutilação dos seres ante à imersão numa paisagem muito maior, o vazio dos personagens se construindo através do vazio das paisagens de um Antonioni, ou o esmagamento por elas dos amantes, como em Astruc, mais especificamente em A Educação Sentimental (1962), que, como disse Jean-André Fieschi, não mistura os méritos da literatura e do cinema. Talvez estejam certos.
O museu de Morel parece ter esse nome superficialmente, mas o tenha, talvez, em sua condição ontológica: guarda os seres como tais no tempo e o tempo em si; é a promessa talvez cumprida (não ideal, para nossa consciência) da eternidade. “A sobrevivência do tempo”, dirá Morel. Não é a sobrevivência da consciência como temos enquanto vivos, mas a sobrevivência da consciência naquele período, metonímia para o próprio ato de expressão nas “artes” (na falta de um termo melhor): nelas, a obra do criador, o material criado, é a sua própria consciência, enquanto habitação no tempo, seja ele linear, fragmentário ou repetitivo, o eterno retorno, que garante a repetição da consciência que habita cada um dos seres e que porventura os distingue.
Faustine, mulher que o protagonista fica observando toda vez que, com seus lenços coloridos, ela acompanha o pôr do sol, o faz oscilar em suas decisões de vida ou morte: “No espero nada. Esto no es horrible. Después de resolverlo, he ganado tranquilidade. Pero esa mujer me há dado una esperanza. Debo temer las esperanzas.”3. Aos poucos ele se torna um amante da sua imagem, analisando minuciosamente a relação dela com Morel: “no hay prueba definitiva de que Faustine sienta amor por Morel. Tal vez el Origen de las sospechas esté en mi egoísmo.“4 Seja qual for a diferença ontológica que o distingue de Faustine, ele pede a quem puder o ato misericordioso de fazê-lo entrar na consciência de Faustine.
Em A invenção de Morel, várias teorias (existenciais, referentes ao tempo, à sucessão do tempo, etc.) desejam habitar o museu (e por conseguinte, a obra), mas elas encontram apenas a ocupação dos seres em suas respectivas condições, para não reduzir o fantástico a uma descrição limitadora.
O museu de Morel é a especulação do condenado à morte: “la vida será, pues, um depósito de la muerte”5. No livro, o condenado quer apenas viver no céu que é a consciência de Faustine. No filme, Morel será destruído. Talvez, para Emídio Greco, a conservação do tempo e a tentativa de parar o tempo venham junto com a destruição do tempo em si, uma das maiores conquistas do século XX.