Muito tem sido dito e escrito nos últimos tempos, especialmente nas pesquisas acadêmicas da área das Ciências Humanas, sobre sociabilidades que se desenvolvem nas frinchas da correlação de forças dominante. Sendo impossível ignorar o caráter capitalista que impera em muitas relações sociais (inclusas aqui as “relações de mercado”, “líquidas”, “de consumo” e afins), não se pode incorrer no erro inverso de pressupor, por essa predominância, que esse caráter impera solitariamente esmagando todas as demais possibilidades de sociabilidade que se coloquem alternativamente a ele. Considerar que existem sistemas de valores e alteridades que não são explicadas por esse caráter e que não são regidas pelas suas “regras” é constatar que, felizmente, o ser humano continua “funcionando” em outras frequências que não somente essa.

Dizer isso pode parecer incidir no óbvio ou, em termos mais cotidianos, “chover no molhado”. Contudo, entender a dinâmica que rege as sociabilidades que fogem àquela hegemônica certamente não o é. A “lógica” que orienta relações de outro caráter é bastante complexa e envolve considerar o universo e os sujeitos concretos nelas envolvidas. Uma vez que cotidianamente vivenciamos contatos pessoais e impessoais que operam pela “lógica” predominante, isso às vezes nos caleja a ponto de tornar difícil compreender algo que fuja (ou quiçá se contraponha) a esse modo de existir socialmente.

Partindo do pressuposto de que essa mudança na substância das relações sociais não se restringe ao tão falado dia a dia, e que acaba se infiltrando na literatura e na poesia, é que se encontra Luciana di Leone e sua pesquisa. A autora busca investigar como as marcas de algumas dessas sociabilidades distintas, eminentemente contemporâneas, ajudam a modelar e modular o “comportamento” e a produção de poesia. Nesse caso, trata-se do que a autora chama de “escolhas afetivas”.

A coleção Entrecríticas iniciou seus trabalhos publicando o livro de Florencia Garramuño, Frutos estranhos, o qual analisei aqui no Posfácio na semana retrasada. O segundo livro publicado pela Rocco nessa coleção foi o supramencionado trabalho de Luciana di Leone intitulado Poesia e escolhas afetivas.

Assim como seu colega de coleção, Poesia e escolhas afetivas conta com um subtítulo ambicioso: Edição e escrita na poesia contemporânea. Ou seja, di Leone quer pensar tanto como as sociabilidades contemporâneas (“pós-utópicas”, segundo a orelha do livro) influenciam a poesia contemporânea quanto a maneira como se costuma editar essa poesia. Trata-se de uma proposta interessante, porque permite vincular a “obra acabada” (o poema) com sua feitura e com as condições nas quais ela foi gestada, tratada e editada.

Para levar a cabo essa tarefa, a autora elege um conjunto de obras poéticas dentro da grande área “Poesia contemporânea” para dar conta de aprofundar sua análise mais adequadamente. A “região” poética que escolheu foi a que engloba poetas e poesias brasileiros e argentinos dos anos 1990 e 2000. Dentro de tal recorte di Leone pôde trabalhar uma série de questões recorrentes, pois esses autores gozam de uma semelhança palpável o suficiente para ser entendida como fenômeno coerente, que corrobora sua tese das “escolhas afetivas”.

Ao considerar as condições nas quais surgiu essa poesia, é possível perceber que a organização da produção literária se deu em revistas e coletâneas publicadas física e virtualmente, e que congregavam entre seus autores um conjunto de poetas que se juntaram mais por conhecerem-se uns aos outros do que por algum outro fator primordial. A partir dessa reunião informal, que ocorria por meio de uma divulgação não convencional, ganhou corpo uma produção poética que partilha uma série de características que, segundo di Leone, expressam essa sociabilidade nascida das “escolhas afetivas”.

O aumento do círculo de poetas e poetisas é pautado, em parte, no princípio do “amigo que conhece um amigo”, trazendo ao seu seio sujeitos sensíveis às aspirações poéticas de conhecidos seus e também leitores que dialogam com esse grupo. A própria edição, preparação e circulação das revistas, coletâneas e produções desses grupos funcionam numa esfera que talvez pudesse ser chamada de underground, pois opera em nichos que não são “cobertos” pelas editoras mainstream, junto a um público formado em condições similares.

Di Leone baseia sua argumentação acerca das novas sociabilidades na obra de intelectuais que construíram interpretações a respeito de como as pessoas passaram a se relacionar num ambiente histórico em transformação, como é o mundo do final do século XX. Esposito, Castells e Deleuze aparecem como interlocutores da autora quando se trata de entender como a reunião desses autores brasileiros e argentinos refere-se a uma conjuntura em que as identidades e laços tradicionais estão, supostamente, diluindo-se aceleradamente. É lastreada no argumento desses pensadores que di Leone sustenta que o agrupamento desses poetas e poetisas constitui-se numa experiência de relação afetiva característica da contemporaneidade.

Argumentando nesse sentido é que di Leone encontra Nicolas Bourriard e sua “estética relacional”, ao passo que procura mostrar como na poesia brasileira e argentina contemporânea encontram-se exemplos dessa vontade de agrupamento referenciada numa escolha afetiva. A “escolha afetiva” se reitera na medida em que o círculo de poetas aumenta pela livre associação daqueles que foram convidados por já ter algum vínculo com algum dos poetas ou que se sentiram partícipes daquela comunidade de afetividade.

Embora a ênfase na “escolha afetiva” seja um fator a se considerar, permaneço cético quanto à virtual consideração de que ela se sobreponha a outros vínculos e sociabilidades ditas “tradicionais” (tais como a classe social, por exemplo). O afeto não perpassa somente uma escolha de cunho individual, mas condicionada por uma pertença social, cultural e material. Ainda que haja o princípio da sensibilidade comum a juntar esses sujeitos e modelar sua poesia, ele não existe dissociado de outros fatores concretos da existência social, com os quais, em última instância, é obrigado a coexistir.

Nesse sentido, portanto, as “escolhas afetivas” não deixam de dialogar com seu entorno social e histórico. Se considerarmos que uma certa “vontade de agrupamento” pauta a “escolha afetiva”, torna-se forçoso considerar que a situação em que ela se dá pressupõe outras pertenças que não são satisfatórias, do contrário a “vontade de agrupamento” teria se atrelado a elas. Como muito bem notou o crítico literário Jean Starobinski ao analisar a obra de Rousseau: “É pelo conflito com uma sociedade inaceitável que a experiência íntima adquire sua função privilegiada. […] o domínio próprio da vida interior é delimitado pelo fracasso de toda relação satisfatória com a realidade externa.” (p. 12)

Tendo isso ponderado, pode-se ver como o universo de fatores a ser cotejado é bastante complexo, de modo que penso que apesar da peculiaridade “afetiva” das escolhas poéticas em questão, elas não deixam de se arvorar em questões e quadros que não podem ser ignorados embora não sejam absolutamente contemporâneos (ou “pós-utópicos”).

Bibliografia citada:

STAROBINSKI, Jean. Rousseau – A transparência e o obstáculo. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.