Eu gosto de literatura russa. Já houve um tempo em que eu diria “minha literatura favorita é a literatura russa” – como se fosse possível existir uma preferência assim, delimitada. O fato é que o primeiro escritor mais complexo e interessante que fui ler – e ficar completamente embasbacado – foi um russo: Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski. “Os Irmãos Karamazóv” é um livro e tanto.

O tempo passou, meus interesses se expandiram e mudaram. Ainda leio muita literatura russa, especialmente poesia. Mas também de muitas outras “origens”, boa parte “daqueles lados”: a assim chamada Europa Oriental. Poloneses, ucranianos, tchecos, eslovacos, romenos, húngaros, búlgaros, iugoslavos (sim, eu sei da divisão, mas isso é assunto longo, complexo e pra outra hora; aceitemos o anacronismo), etc, etc e tal, povoam minha lista de leituras. Aqueles nomes impronunciáveis com cedilhas em letras indevidas, com acentos circunflexos invertidos sobre consoantes, com alfabetos aparentemente alienígenas; isso me atrai sobremaneira.

Mas não é apenas o exotismo da coisa, a dificuldade dos nomes (e, muitas vezes, da língua – já que muito pouco foi traduzido por essas bandas) que me cativa. É toda a história desses lugares. Que, acho eu, poucos resumem melhor do que o poeta ucraniano Taras Shevchenko:

 

Deus amado, de novo o mal!
Estava tão bom, tanta calma;
Começávamos a nos livrar
Das correntes da escravidão
Mas aí… Ai! De novo correu
sangue camponês! Assassinos coroados
como cães famintos, brigando
por um osso, de novo!1

 

É uma região historicamente turbulenta. Se contarmos essa tal Europa Oriental como toda a região compreendida entre a Rússia e os países comumente aceitos como ocidentais (que, acho eu, começa ali onde se fala alemão), os últimos conflitos que, pelo menos, começaram na região foram: a Primeira Guerra Mundial (começou na Iugoslávia), a Segunda Guerra Mundial (começou na Polônia), a Guerra de Secessão da Iugoslávia, a Guerra da Transinístria e, agora, os conflitos separatistas (guerra civil?) na Ucrânia. Basicamente todos os conflitos em território europeu desde o começo do século XX nasceram lá. Nos Bálcãs existe a imagem da tamni vilajet, a folclórica terra dos mortos, que prescreve a carnificina como algo mítico e endêmico à região – uma visão certamente errônea, que serve a uma série de programas nacionalistas, mas cuja existência pode ser considerada bastante sintomática.

O certo é que, como já apontava Shevchenko, os culpados são os “assassinos coroados”: governantes locais e, muitas vezes, estrangeiros, que querem estender seus domínios, às custas da paz local. Paz, que, aliás, é muito mais produtiva para o mundo: fala-se de multiculturalismo hoje, mas, antes da Segunda Guerra Mundial, isso já era uma realidade – em algumas cidades, como Lviv, conviviam poloneses, judeus, ucranianos, russos e alemães. Havia problemas, é verdade – o pogrom de Lviv em 1918 é prova cabal disso, bem como as constantes rusgas entre poloneses e ucranianos – mas as relações podiam ser amistosas e bastante produtivas.

Foi num ambiente parecido, por exemplo, na Białystok, falante de ídiche, polonês, russo, bielorrusso e alemão, que Ludwik Lejzer Zamenhof criou as bases do esperanto. Vilna – em que se acresce o lituano à mistura – foi berço de inúmeras vanguardas artísticas e literárias. Ou, então, tomemos Elias Canetti como exemplo: falante nativo de Ladino, na infância teve contato extenso com o búlgaro, para só depois aprender o alemão no qual escreveria e ganharia o Nobel.

Ou, mesmo, na Ucrânia de hoje: o ucraniano retém o prestígio de língua oficial, mas além dessa língua, também se usa russo, caraíta, tártaro, krimchaque, urum, húngaro e moldavo. Aí começa toda a confusão: os putinistas acusam o governo ucraniano de proibir o uso da língua russa e de antissemitismo; os governos da Ucrânia e os do assim chamado ocidente, por sua vez, atacam os separatistas e o governo russo com argumentos semelhantes.

No meio disso, é difícil saber o que acontece com as pessoas de verdade – especialmente entre os falantes de russo e ucraniano, os dois maiores grupos étnicos do país. Serhij Zhadan, um poeta de língua ucraniana, foi atacado há alguns meses por separatistas russos na cidade de Kharkiv. Mais ou menos na mesma época foi publicada uma carta, da qual segue um trecho:

“Nós, escritores russos de Kharkiv, queremos que vocês ouçam nossas vozes: nós somos livres para falar russo tanto no trabalho quanto em casa, com qualquer um em nossa cidade, ucranianos e outros. De qualquer maneira, não acreditamos que um discurso a respeito de uma língua nacional seja caso para uma intervenção militar.

Nós, os escritores russos de Kharkiv, somos cidadãos da Ucrânia, e não precisamos que os militares russos nos protejam. Nós não queremos que, sob a proteção da retórica da defesa de nossos interesses, outra nação invada nosso país e coloque em perigo a vida de nossos parentes e amigos.”2

No fim das contas, prefiro acreditar nisso. Que, mais uma vez, são os assassinos coroados que estão se matando e, como de praxe, usando as pessoas como escudo, como retórica. Alguns caem nessa conversa, pois é sempre mais fácil acreditar que o outro é o inimigo, e não parte de si. Mas, tirando as ambições e incursões de Moscou, não quero acreditar que a situação na Ucrânia está tão ruim.

Os homens de meu país3

 

(Andrii Bondar)

 

os homens de meu país
levantam no metro
para deficientes, idosos
e aos passageiros com crianças
ou, na maioria, continuam sentados

os homens do meu país são
belos espécimes para um entomologista
pois são frágeis como borboletas exóticas
presas a um pedaço de papelão
eles percebem o valor
de cada movimento, de cada som
pois a vida é um eterno crime
que não tem porquê

os homens do meu país
morrem de modo prematuro
e se tornam anjos sem peso
e matéria prima ideal
para especulações metafísicas
e discussões supérfluas a respeito da existência
de Deus ou coisa que o valha

 

  1. Tradução própria, do ucraniano. Ainda bastante preliminar.
  2. Tradução própria, do inglês.
  3. Tradução própria, a partir da versão inglesa de Vitaly Chernetsky. Estou trabalhando em uma tradução direta, que deve ser lançada pela Corsário-Satã, em algum momento do futuro próximo.