Eu costumo avisar potenciais companheiros de viagem que tenho muito azar. Muito, muito azar. Que viajar comigo quase sempre significa dar de cara com uma guerra, ter que peregrinar por consulados, conhecer maníacos pelo caminho ou ter que dormir no chão de um aeroporto e ganhar sanduíches da Cruz Vermelha (uma história real, cortesia do aeroporto de Barcelona). Quase sempre a resposta é “imagina, você está exagerando”, ao que posso responder “já fui roubada em um país onde não existe propriedade privada”.

No dia 7 de janeiro de 2014 (data inscrita no B.O) a autora desta coluna foi roubada em Santa Clara, República Socialista de Cuba, enquanto voltava de um cabaré de drag queens. Entre os itens roubados estavam incluídos um bilhete único, um cartão do sistema municipal de bibliotecas de São Paulo, uma carteira de motorista, um óculos de grau de marca francesa e um iphone. Lembrando que mal tinha sinal de celular em Cuba, todos itens eram, claro, extremamente úteis para o autor do roubo.

Mas vamos começar do início. No dia 31 de dezembro embarquei para Havana, onde passei uma das noites de ano novo mais totalmente sem sentido da história da América Latina, Caribe e outros possíveis lugares do mundo. Alguns dias depois, eu e os dois amigos viajando comigo pegamos Wanda, o carro, e partimos para atravessar a ilha.

É uma experiência única fazer uma road trip em Cuba. Um mundo povoado por tratores gigantescos que apelidamos carinhosamente de transformers, carroças como o meio de transporte mais comum, belos espécimes masculinos (às vezes apelidados de “boiadeiro” ou “capitán Cuba”) e outdoors que dizem coisas como “Chávez, nuestro mejor amigo” em fonte digna de power point dos anos 90, acompanhado de uma foto do Hugo Chávez pensativo. Acho que você nunca tem a real sensação de “meu deus, como eu vim parar aqui?” até estar cantando Backstreet Boys a plenos pulmões em um carro coreano atravessando campos de trigo em Cuba.

Mas enfim, atravessávamos a ilha de carro. Santa Clara não tem muita coisa além do mausoléu de Che Guevara (as incontáveis piadas com “a pistola de Che”) e um cabaré de drag queens. Um cabaré de drag queens. Em um país socialista. Altamente recomendado pelo Lonely Planet, diga-se de passagem.

Cientes das dificuldades de ser uma drag queen em Cuba, partimos levando cílios postiços e outros itens de extrema importância para doação. O lugar era composto de uma arena aberta e um bar onde garrafas de um rum que parecia gasolina eram entornadas em garrafas de Havana Club. Ok, hoje é só cerveja para todo mundo. A primeira atração era uma espécie de Cauby Peixoto em roupa prateada que terminou seu número com um espacate invejável. As seguintes eram divas maravilhosas que lip sync for their lives (alguém já pensou em Ru Paul’s edição Cuba?) enquanto homens enfiavam notas de dinheiro em seus peitos. Eu até fiz amizade com um homem de trancinha e camiseta de strass que me achou a coisa mais maravilhosa que ele já tinha visto na vida. Que bela noite.

Saindo de lá, andávamos pela rua enquanto discutíamos “qual o lugar mais estranho que você já esteve?” Uma balada gay clandestina na Rússia, uma rave no meio do deserto israelense… E alguém passa de bicicleta, arranca minha bolsa do ombro e sai pedalando. Corremos atrás gritando “ladrão! Ladrão!”, mas ele foi embora. Com os gritos, a rua inteira começa a abrir as janelas e recomendar “é melhor ir à delegacia, é aqui perto”.

Ok, andamos até lá, sou atendida por um homem de aproximadamente 1,60 usando o uniforme de alguém de 1,90 e conto o que aconteceu. Ele me pede para esperar. Uns minutos depois vem outro policial e conto novamente o que aconteceu. Ele me informa que chamarão o delegado e me pede para esperar. Me sento então em uma sala que ainda exibe a decoração de fim de ano, feita de restos de provas de matemática do primário, acompanhada por um ventilador cor-de-rosa e uma televisão passando Lawrence da Arábia.

Espero, espero, espero. Enquanto espero, o Cauby Peixoto do cabaré passa ao lado em roupas de civil e, quando um soldadinho fardado entra e sai da sala, minha amiga comenta “olha, o Recruta Zero”, gerando um acesso de riso muito pouco apropriado para o quartel de polícia de um país não democrático. Afinal, chega o delegado, ou delegato, como ficou carinhosamente conhecido depois.

Delegato nos leva para uma salinha e pergunta pela terceira vez o que aconteceu enquanto anota tudo a mão  ah, as maravilhas vintage do socialismo. Conto de novo. Quanto media o ladrão? Como era a roupa dele? E a cor da pele? Sua bolsa tinha mais de um compartimento? Qual era a cor? Quanto custou? E a carteira? Qual era a cor dos cartões de crédito dentro da bolsa? Como era a capinha do celular? Infinitas perguntas depois, Delegato avisa que teremos que voltar à cena do crime. Pena que ele não consegue abrir a porta. Acena e grita para o subordinado que está passando do lado de fora e que apenas dá de ombro. O retrato da autoridade. Acena e grita para um outro que diz “usa a porta dos fundos”. Um dos meus companheiros de viagem é mais rápido, porém, e abre a porta, enquanto Delegato apenas olha com uma ótima cara de “ninguém aqui me respeita”. Estamos indo bastante bem para um estado não democrático.

Voltamos à cena do crime acompanhados de Delegato e seu assistente gordinho e nos posicionamos como no momento: eu e o cara comigo na rua, a outra menina na calçada um pouco afastada. Assistente gordinho tira uma única foto de nós dois, os reais envolvidos, e 400 mil fotos dela. Hum… Não satisfeito, ele vira a câmera e começa a voltar as fotos e podemos ver um belo e muito próximo close nos peitos. Em defesa dele, ela estava com um decote difícil de ser ignorado. Não se esqueça, Luciana, dos seus peitos arquivados na polícia cubana.

Terminada a reconstituição, entro em casa e Delegato tenta puxar um assunto amigável “olha, nós fazemos aniversário na mesma semana”. Ok… ele me promete colocar o B.O por baixo da porta no dia seguinte e realmente faz isso. Um B.O feito em máquina de escrever quase sem carbono e que hoje está guardado com meu B.O italiano da perda do passaporte. Tenho tentado manter uma coleção, mas Cuba vai ser sempre o melhor país.