Enquanto Deus não está olhando, o mundo inteiro pode mudar e você nem perceber. É o que o pai de Érica diz, internado no hospital, debilitado pelos anos de alcoolismo. A frase, em si, demora para aparecer no romance de Débora Ferraz, vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2014. Na verdade, a palavra (ou nome) “Deus” é pouco citada durante toda a narrativa de mais de 360 páginas, mas ainda assim é o que dá título ao livro. Enquanto Deus não está olhando é sobre mudanças, e sobre como lidar com elas.

Érica Valentim é a narradora, uma jovem pintora de 20 e poucos anos. Ela está perdida, em busca de um pai que sumiu: um pai alcóolico, que não a compreende e nem aprova sua escolha profissional, mas que mesmo assim é amado e procurado pela filha. Na busca, ela é acompanhada, ou melhor, amparada, por Vinícius, um velho amigo com quem não mantinha contato há cinco anos. No desespero, ela liga para ele, e ele a ajuda. Eles têm uma história mal resolvida, e o retorno do contato é permeado pela tensão desses anos sem se falar. Enquanto procura o pai, Érica evita pisar na garagem recém transformada em ateliê, uma reforma caseira que seu pai com certeza não aprovaria. Mas ela nem teve chance de contar a novidade a ele, pois antes disso ele sumiu de sua vida. Só não da maneira como as primeiras páginas do romance dão a entender.

Aluízio, o pai, morreu. Restaram Érica, infeliz no seu emprego em uma agência qualquer de uma cidade no Nordeste, sua mãe, que alterna entre “dias ultra-atarefados” enquanto em outros “nem sequer tira a camisola, e ter duplicado a quantidade de cigarros diários…”, e seu irmão mais novo, um adolescente sem muita participação na história que passa os dias vendo desenho na TV, “nessa espécie de autismo opcional que ele se enfiou”. Érica quer e não quer lidar com o assunto. Espera encontrar o pai nos bares na beira da praia como sempre acontecia antes de ele ir para o hospital, dizer pacientemente que estava na hora de parar, de ir para casa, de se recuperar. Ela é uma garota complexa, e a confusão que toma conta de sua mente logo após a perda se reflete na estrutura do romance – Débora mescla passado e presente, a chegada da morte contada em um diário e os dias em que tenta levantar a vida, buscar inspiração para a pintura novamente ou então ter pelo menos um plano de sobrevivência no mundo.

No passado, Érica é uma filha preocupada pelo pai, carente de aprovação, cheia de conflitos com a figura paterna que tenta, a todo custo, agradar e ser aceita pela escolha profissional que fez – Aluízio queria uma filha médica, apesar de ele odiar médicos, que ironia. No presente, a figura masculina que lhe tira a concentração é Vinícius, seu jeito totalmente calculista e certinho, que não joga nada fora, que guarda tudo para si e planeja cada passo diário, tudo bem ao contrário do que Érica é. Aos poucos, conforme ela vai aceitando o novo círculo social que lhe rodeia (Vinícius vem acompanhado de todos os seus outros amigos), o emocional de Érica se ajeita, e ela vai revelando o que, definitivamente, aconteceu com seu pai.

 

“– Você acha que sou inconsertável? – pergunto a Vinícius.
– Inconsertável?
– É. O tipo de coisa que não vai ter jeito. Que não vai conseguir autonomia.”

 

Érica é uma pessoa que se sente errada, quebrada. A morte do pai coloca a família em uma situação financeira complicada e, para uma garota da sua idade que ainda não sabe ao certo como ganhar dinheiro com o que gosta e o que fazer da vida, é um caos. A preocupação com o pai, no início, parece ter a ver com essa dependência financeira que a família tem dele – “ele é o principal provedor da casa” –, mas aos poucos Débora mostra que a relação pai/filha vai muito além. Tem a ver com aceitação, com orgulho de suas escolhas, com amar uma pessoa apesar de todos os seus defeitos.

Paralelamente a isso, Érica se envolve a fundo com Vinícius, e da metade do romance para a frente ele divide espaço igual com Aluízio. E aí se configuram duas perdas: uma passada e uma futura, pois ele está prestes a se mudar para o Sul do país, abandonando família, amigos e Érica. Os trechos finais do romance são tensos e frenéticos enquanto cada bloco de texto alterna entre Érica e a mãe chegando no hospital, o desfecho definitivo da história de Aluízio, e Érica e Vinícius a caminho da despedida. Débora Ferraz é uma ótima contadora de histórias, dosando bem os momentos contemplativos do livro – os devaneios de Érica, aquilo que ela omite em seus diálogos, a relação com a pintura… – com as ações, que se escondem nas entrelinhas. Aos poucos Débora monta os cenários e, quando você percebe, o ato se desenrola e você é surpreendido. Enquanto o leitor se distrai, tudo muda.

 

“– Não te frustra essa sensação de que estamos em um lugar completamente diferente do que deveríamos estar? – perguntei a ele. – Levando em conta que, com a nossa idade, nossos pais já estavam muito mais bem estabelecidos?
– Não. Estou fazendo o melhor que posso.
– E como você sabe que não poderia estar fazendo mais? Não dá medo de tudo o que pode vir? De toda infelicidade que pode estar pela frente.
– Eu não espero ser feliz no futuro. Você também não deveria.
– Pensei que fosse isso o copo de uísque para você.
– A meta é, apenas, não brigar contra a infelicidade. É inútil e causa desespero. As pessoas ficam buscando felicidade quando estão na fossa. Aí é que tá o problema. A fossa a gente tem que aceitar e aprender a conviver com ela.”

 

A partir dessa pergunta de Érica me senti próxima à personagem. A essa indefinição sobre o futuro, a sensação de que você está atrasada em relação à geração anterior, atrasada até em relação à sua própria geração. Como se não estivesse fazendo o bastante. Érica, com a perda, reavalia o que quer. Ou melhor, desiste traumaticamente do seu sonhado ateliê e se vê sem perspectiva, sem vontade de continuar seus trabalhos, sem ideia do que gostaria de estar fazendo. É um sentimento que percebo não só em mim mesma, em alguns momentos, mas em várias pessoas da minha idade, essa urgência pela estabilidade e pelo sucesso, difícil de alcançar enquanto queremos ter tudo ao mesmo tempo, impacientes, e tendo objetivos bem mais ambiciosos do que os nossos pais tiveram.

“Você vai ter esquecido tudo o que se passou entre nós, e, se você tiver esquecido, então eu lembrarei sozinha. Não vai haver registro, prova, cúmplice, apenas imagens vagas na minha cabeça. E tudo o que é assim não é real. Não tem como diferenciar uma lembrança de um devaneio. Portanto, a partir do momento que você esquece, é como se tudo isso – aquela noite no escuro em que você disse ‘poderia ter dado certo’ – nunca tivesse existido em nenhum lugar no tempo, no espaço, apenas na minha cabeça.”

 

Enquanto Deus não está olhando se desenvolve muito nessas entrelinhas, nos silêncios das personagens, nos diálogos bem construídos, nos sonhos da protagonista e na estrutura que não respeita a cronologia dos acontecimentos. Débora Ferraz emprega bem nas frases a melancolia e desespero de Érica, a impaciência de Vinícius, a saudade e a carência de suas mães. E amarra as duas tramas, passado e presente, de uma forma bonita, que termina na própria arte que Érica faz e que lhe atormentou durante todo o livro, o cheiro da terebintina nos dedos se tornando familiar de novo. Para um romance de estreia, está mais do que aprovado, e, num consenso raro entre júri e leitora final (no caso, eu), teve um prêmio mais do que merecido.