Não sei dizer se isso data do modernismo ou de algum outro período artístico-literário qualquer (quem sabe da ruptura de Joyce ou quem sabe até mesmo do Pound), mas me parece que de uns tempos para cá (um tempo longo, vejam vocês), o novo tem se tornado, na literatura e em outros âmbitos, sinônimo de bom. E não só isso. A ideia de novo tem sido mesclada, se não confundida, com a ideia de puramente diferente, de modo que esse novo se torne, muitas vezes, “mera” variação do velho.
Creio, no entanto, que o problema de fato não esteja exatamente aí, afinal ser novo não é um demérito. O problema encontra-se, a meu ver, em dois corolários derivados da ideia apresentada no parágrafo acima: 1. na exaustiva reivindicação do novo como uma necessidade; e 2. na imputação reversa, que transforma o “não novo” em automaticamente ruim. A partir desse modo de pensar, é como se cada novo livro tivesse que ser estroboscopicamente novo, romper todas as amarras com o velho, se apresentar alternativamente e, para tal, quase sempre ter que criar uma aura arcaica e obtusa naquilo que, supostamente, deixou para trás.
A razão pela qual tomei a liberdade de iniciar a resenha com uma nota tão pessoal de insatisfação semicontida é que o livro do qual eu vou falar é Alice, de B. Kucinski. Trata-se de um livro que não inova na forma, que não rompe convenções, que não serve como um divisor de águas na história da literatura universal mas que, apesar de tudo isso, é uma boa leitura.
A história é linear e segue a “arcaica” estrutura de romances policiais: um assassinato acontece no início da trama e um detetive-protagonista é chamado para desenovelar as informações e descobrir, uma vez eliminada a hipótese de morte natural, quem assassinou, como e por qual razão. Uma professora, Alice Nakamura, é encontrada morta num dos prédios da Cidade Universitária da USP, e o detetive Magno é acionado para dar conta do misterioso crime, já que, apesar do escândalo potencial, a vítima escreveu com sangue uma letra P antes de vir a perder os sentidos e falecer.
Ao longo da investigação somos levados de roldão a conhecer detalhes sobre a rotina da vítima, os eventos que constituíram seus últimos dias de vida, as circunstâncias da morte, as amizades e inimizades que ela cultivava dentro do campus, suas pesquisas acadêmicas, sua vida pessoal e todos os demais resquícios de informação que puderam ajudar na resolução do caso. A tensão quanto à identidade do assassino é mantida aguçada pela incerteza quanto à sua mensagem de sangue ser, quem sabe, um B ou um R inconclusos, o que coloca uma porção de personagens na mira do investigador Magno. Kucinski, aliás, nomeou vários deles com as iniciais P, B e R, tornando todos potencialmente suspeitos.
Magno interroga a família de Alice, seus colegas, seus pupilos, seus assistentes, os funcionários daquela área da universidade, os diretores, amigos e todos aqueles que poderiam contribuir para a elucidação da morte da professora. A narrativa é construída tão metodicamente quanto a investigação de Magno, e o leitor, como é de praxe em romances policiais, começa a construir suas próprias hipóteses interpretativas acerca do crime. O interessante é como cada novo fator ou elemento vai redimensionando as suspeitas sobre um e outro personagem, e como a articulação entre eles é o ponto alto da trama.
Cônscio das peculiaridades da trama policial, Kucinski se vale delas sem se render a clichês. Em alguns momentos é quase perceptível uma certa ironia ao tratar de Magno, inclusive pelo nome megalômano que o escritor lhe concedeu. De qualquer forma trata-se de um livro de leitura fácil que combina diálogos numa proporção ponderada com explorações mais descritas e narrativos do próprio autor, conduzindo cuidadosamente o leitor de modo a pô-lo diante de todos os fatos que podem ajudar na elucidação final.
E por falar da “mão do autor”, é indício dela que percebemos quando a própria trama (construída pragmaticamente nesse sentido) leva Magno a colocar-se diante de problemas com os quais Kucinski encontra-se comprometido, politicamente inclusive. Em conversa com outros professores da universidade, por exemplo, Magno descobre uma série de problemas concretos (não ficcionais, mas reais) acerca da universidade e do passado histórico brasileiro. É num dos interrogatórios que Kucinski fala pela boca de um professor dizendo que a ditadura militar quebrou com boa parte da envergadura intelectual da academia no Brasil. É nesse mesmo diálogo, também, que vem à tona a triste situação da pesquisa e dos critérios de avaliação no Brasil, pois Kucinski usa um tom bastante crítico para mostrar como a pesquisa pública encontra-se sucateada, e como o viés quantitativo (ao invés do qualitativo) tem imperado sobre o julgamento da produção intelectual. O que alguns chamam de “lattismo” ou ascensão do “Homo lattes” (em referência à plataforma utilizada para cadastrar as informações curriculares) tem exercido influência draconiana sobre as avaliações institucionais com relação a recursos, verbas e tradição intelectual.
Sabemos que esses momentos da trama (ou essas soluções literárias internas) respondem a preocupações reais e concretas do próprio escritor, de modo que ele ordene sua literatura também nesse sentido. Antes de onerar, truncar ou desarmonizar o livro, esses momentos servem como móbiles da própria trama, estando a ela integrados como sua parte orgânica.
Embora menos ambicioso que o romance K., que lidava com um dos mais espinhosos temas da história brasileira (a ditadura militar), e menos abertamente engajado que as obras de não ficção de B. Kucinski, Alice se apresenta como uma obra interessante e agradável de se ler. Apesar de algumas situações do desfecho do livro soarem um tanto artificiais, ainda assim é uma boa pedida, seja pela exploração de temas delicados por meio da ficção, seja por apostar em bons e velhos recursos que, afinal de contas, não envelhecem tão rápido assim.
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