A exploração do homem pelo homem começou da exploração da mulher pelo homem.  – Karl Marx

 

É difícil tornar palatável ao público do Cinema, que muitas vezes busca apenas entretenimento, uma história tão sombria e odiosa como a de Dominique Strauss-Kahn (DSK), o outrora todo-poderoso do Fundo Monetário Internacional, casado com uma bilionária das comunicações, que caiu em desgraça e foi preso em Nova York depois da denúncia de uma camareira de abuso sexual. Talvez seja por isso que em Bem-Vindo a Nova York o diretor Abel Ferrara nem tente dourar a pílula e nos entregue uma história que ao longo de duas horas é pura brutalidade e horror.

Mousieur Devereaux (Gérard Depardieu) é diretor do Banco Mundial e aspirante, por influência da esposa Simone (Jacqueline Bisset), à presidência da França. Os primeiros quarenta minutos de filme pintam o cenário dionisíaco de um homem assentado no poder, reinando num universo particular à parte dos problemas do mundo, fiel a seus princípios morais dúbios e respaldado pela fama e pelo dinheiro. Em seu escritório na Europa, prostitutas se fingem de secretárias e servem para “amansar” eventuais interlocutores nervosos em reuniões tensas, e a devassidão acontece ali mesmo, no espaço oficial. Em Nova York, Devereaux é recebido em sua suíte de hotel por amigos e prostitutas; imediatamente parte com uma delas para o quarto e lhe extrai um boquete agressivo, uma cena lindamente iluminada, em que tudo encontra consonância, da lingerie vermelha da garota à imensa barriga de Depardieu, compondo um cenário diabólico ideal. Emendando uma orgia em outra, o senhor chama mais duas jovens acompanhantes, finalizando a noite com um ménage que lhe realiza as limitações da idade já um pouco avançada e, sobretudo, as impossibilidades físicas de um glutão. Não satisfeito, o homem ainda ataca a camareira negra, imigrante e de meia idade que, desavisadamente, entra em sua suíte justamente quando ele saía do banho. Em uma das cenas mais agressivas do filme (outras piores vêm depois), ele impele a cabeça da senhora em direção a seu pênis, enquanto ela grita para que a solte. Posteriormente, a mulher dá queixa da agressão, e a policia estadunidense consegue prendê-lo antes que pegue o voo de volta à França.

Como eu disse: esse não é um filme agradável de assistir, e por mais que isso seja estranho de se dizer, é justamente aí que está seu triunfo. O diretor não esconde a brutalidade a que DSK/Devereaux submeteu suas vítimas, e ao longo de toda a narrativa o personagem tem retrospectos de outras situações semelhantes, de assédio e tentativa de estupro, com diversas outras mulheres, mas onde ele havia passado impune.

A queda de Devereaux começa no aeroporto JFK, num incrível golpe de sorte (para a polícia, e azar para ele). Ele havia esquecido o celular no hotel e a polícia se aproveita desse gancho para armar sua prisão. Com a posterior negação da fiança de liberdade provisória, numa cena em que a advogada de acusação faz um paralelo com a frouxidão da lei que permitiu a fuga de Roman Polanski1, Devereaux é mandado à prisão.

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Acima, Dominique Strauss-Kahn e Anne Sinclair na vida real. Abaixo, suas representações no filme de Ferrara. Encaixe perfeito.

Nesse momento entra em cena a personagem mais intrigante da trama, símbolo da lógica da impunidade dos ricos e causadora de mais sentimentos raivosos na plateia: Simone (ótima interpretação de Jacqueline Bisset2), a esposa de Devereaux, uma mulher influente na mídia e na política francesas, bilionária de nascença e que faz de tudo pela liberdade do marido, exatamente igual a Anne Sinclair, ex-esposa de Strauss-Kahn (eles se separaram em 2013, depois que as denúncias contra ele foram retiradas, num caso muito suspeito em que as reclamantes foram acusadas de “falta de credibilidade” e as provas, inconclusivas3).

Alugando uma “modesta” casa tríplex a U$60 mil por mês para que o marido possa ficar em prisão domiciliar, Simone surta mais pela queda de suas pretensões políticas, que certamente colocariam o marido na presidência da França, do que pelo crime de que lhe acusam. Há momentos de forte embate, em que ela aparece como uma esposa resignada, até mesmo apaixonada, que tenta entender a compulsão e desmesura do marido, mas suas ações são pragmáticas: é ela quem conversa com os advogados, enquanto Devereaux assiste a filmes antigos; é ela quem paga as contas, enquanto ele se entrega a divagações pseudofilosóficas de uma alma nem um pouco arrependida; e é ela quem decide, ao final, que, de volta à França, eles “vestirão suas melhores caras” e manterão as aparências como um casal feliz e unido.

O caso DSK/Devereaux é, tanto em sua história real quanto na versão trazida por Ferrara, uma metáfora da lógica capitalista que objetifica as pessoas, visa o lucro pelo lucro e sustenta a impunidade dos mais ricos. É uma questão econômica (de classe, como diria o velho Marx), pois Devereaux é rico, e sua agredida, pobre; de gênero, pois ele é homem, e ela, mulher; e racial, pois ele é o europeu branco, e ela, a imigrante negra. É símbolo do abuso a que o pobre é sujeito e a que o rico se acha no direito, e é justamente por isso que esse filme incomoda tanto, mas tanto, em se assistir.

  1. Diretor de cinema polaco-francês, acusado de estuprar Samantha Geimer, de 13 anos, numa festa na casa do ator Jack Nicholson, em Los Angeles. Ele fugiu dos EUA em 1977 e desde então vive em liberdade na França, com eventuais manifestações públicas que pedem sua extradição.
  2. A título de curiosidade, vale a pena assistir à entrevista que Bisset deu ao Programa do Jô, 25/07/2014, veja aqui.
  3. Fonte: Wikipedia, artigo Dominique Strauss-Kahn: New York v. Strauss-Kahn and later allegations, veja aqui.