Por Simone Campos (*)

Nota dos editores: Este texto é parte do especial em memória de Sérgio Sant’Anna. Ao longo da semana, publicaremos todos os dias homenagens ao autor carioca.

Uma das primeiras vezes que avistei Sérgio Sant’Anna foi em 2007 ou 2008, num evento literário no extinto Cinemathèque, que anteriormente era uma clínica onde tratei de uma laringite persistente. A lembrança médica se misturou à visão dele com uma bengala, e comentei com alguém que aquele senhor parecia o Dr. House, da série de TV, na época ainda no ar. Esse alguém, me olhando com certa reprovação, me deu o toque de que o tal “senhor” era o Sérgio Sant’Anna.

Ah, bem que não me era estranho, pensei, do alto do meu provável autismo leve que nunca consegui que diagnosticassem. Pois eu tinha assistido ao filme Um crime delicado (do Beto Brant) no Festival do Rio e ido atrás do livro que o inspirara, e gostado muito. Para mim, a cara do Sérgio Sant’Anna era a do livro. A capa, o peso, o toque, a imagem mental que o texto deixa na gente depois da leitura. Mas, assim que me contaram seu nome, eu o reconheci também de alguma foto grandona de jornal. Ele era desses autores cuja foto sai grandona no jornal, com loas. E eu era uma pirralha literária, na época com 24 anos e dois romances publicados.

Sérgio ia embora cedo dos lugares. (Hoje vejo que nós é que ficávamos até tarde.) O lugar onde o avistei de bengala – a ex-recepção da ortopedia onde certa vez imobilizei um dedo médio virado numa partida de basquete – era agora um loungezinho com música antiga, discotecada por um grande amigo, o Ismar Tirelli Neto. Casais se formavam. Eu tive a rara oportunidade de falar de perto com uma crush, uma moça ruiva, e dar uns beijos. Depois o caso degringolou, mas foi ótimo enquanto durou. Sempre tive a sensação de que avistar Sérgio me dava sorte e rendia felizes coincidências (a tal da serendipidade). Não tenho certeza, mas talvez tenha visto o Sérgio também no dia em que conheci meu marido, Rodrigo.

Sempre que eu esbarrava com Sérgio Sant’Anna era em eventos literários em Botafogo. Às vezes eu pegava ônibus para ir a eventos que fossem em Ipanema, no Leblon ou na Gávea, onde o metrô ainda não chegava – mas tinha que ser um amigo muito querido, porque era um rolê que eu detestava. Bem. Eu nunca encontrei o Sérgio nesses bairros. O mais das vezes foi no Cinemathèque e na Travessa Botafogo. Eu era muito apegada a Botafogo. Depois li em algum lugar que Sérgio Sant’Anna era um pouco assim com Laranjeiras – outro dos meus bairros favoritos para passeios, na época ainda cheio de lojinhas esquisitas, sorvetes artesanais e amigos queridos por visitar, de preferência de bicicleta. Botafogo e Laranjeiras são dois bairros contíguos-com-um-morro-no-meio, próximos o suficiente pra se frequentarem mutuamente. Acho que era o que estava acontecendo. Sem eu notar, foi surgindo uma simpatia pela pessoa do Sérgio – pois eu, jovem macaca velha, já sabia que a qualidade da alma não tinha nada a ver com a qualidade da literatura.

Não me lembro de ter falado muito com o Sérgio, exceto por uma vez. Fazia um calor desgraçado. Eu tinha acabado de comprar um vestido de que gosto muito numa loja do Botafogo Praia Shopping, uma pechincha; usei ele pra ir num lançamento (de quem, também já não lembro) na Travessa Botafogo. O vestido era um ponto feminil extremo na parábola do meu guarda-roupa mezzo butch, mezzo femme; depois me dei conta que, segundo as convenções sociais correntes, provavelmente eu deveria ter raspado a perna pra usar aquilo. Chegando lá, comprei o livro e fiquei na fila de autógrafos. Logo notei o Sérgio Sant’Anna sentado tranquilamente numa cadeira na parte externa, acho que com uma cerveja ao lado na mesinha, e percebi que vários autores jovens se aproximavam dele e conversavam com ele e às vezes lhe davam seus livros, que ele aceitava. Aí eu pensei: ora, por que não? Me aproximei, conversei um pouco – “agora estamos na mesma editora, e com o mesmo editor!” – e, tendo lançado o A vez de morrer há pouco, entreguei-lhe um exemplar que tinha na mochila. Agora não tenho certeza se entreguei mesmo. Será que tive coragem?

Apesar da fama e do conteúdo dos livros dele, Sérgio nunca deu em cima de mim, ao contrário de muitos colegas homens que, num lançamento, mal esperavam a esposa virar as costas pra me chamar para um drinque – ou mesmo me apalpavam sem a menor cerimônia. Quando eu protestava ou não correspondia, eram frios ou venenosos. Esse tipo de coisa foi me deixando agastada com o meio literário. É pra isso mesmo que acham que resolvi escrever?

Sérgio, no entanto, não achava isso. Minha impressão é a seguinte: que ele levava a literatura a sério (no bom sentido; rio de gargalhar com certas cenas dele) e levava a sério quem escrevia a sério. Sem exigir ou se impressionar com puxa-saquismos e beija-mãos, e sem dispensá-los. Sem se prestar a papéis ridículos: quem tivesse que chover em sua horta, chovesse e pronto; se não, sem grilo. Também não era humilde, porque isso não teria cabimento; era tranquilão, naquele meio-termo difícil de alcançar.

Como a partir de 2012 ficamos na mesma editora, a Companhia das Letras, recebi alguns livros dele em casa, novidades ou reedições: O homem-mulher e O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. O romance Amazona, comprei; li também, foi o que mais gostei. As capas novas já são um espetáculo em si, e incitam à leitura. Meu exemplar de Amazona, que traz na capa uma mulher nua na posição amazona (eu ia dizer montada em alguém; mas fui olhar, ela não está montada em nada?!), ficou molhado numa chuva que peguei ao sair de um motel. O livro ficou todo úmido embaixo. Achei engraçado. Até postei a foto nos stories do Instagram.

Sérgio e eu estivemos juntos no obituário ficcional coletivo do Bolsonaro lançado pelo Ronaldo Bressane, o Morre Bolsonaro, ano passado. Outra coincidência: a pedido da minha editora, Alice Sant’Anna, mandei um conto para sair na newsletter da Companhia, Contém um conto, e, logo em seguida, chegou na minha caixa de entrada uma edição da carta com um conto do Sérgio. Escrevi pra Alice de bate-pronto:

“Putz, agora tô lascada entrando na Contém um Conto depois do Sérgio Sant’Anna!”

Era brincadeira, é claro. Além de lascada, eu estava orgulhosíssima. Agora, não sei nem o que me dizer.


(*) Simone Campos é escritora e tradutora carioca. Seu sexto livro, o suspense Nada vai acontecer com você, sai em breve pela Companhia das Letras. Escreve a newsletter ‘Tenho dito’ na qual este texto também será publicado.