Já tentaram pensar no que é o Estado? Quando aprendemos na escola sobre o conceito de Estado, geralmente lidamos com duas definições, uma geográfica e outra histórica. Talvez a geográfica seja a primeira a surgir: o Estado é apresentado como o país. No nosso caso, o Estado brasileiro é necessariamente o Brasil, assim nos tornamos brasileiros automaticamente por nascer e/ou viver dentro de suas fronteiras apenas. Em seguida, deve vir uma definição histórica: o Estado é o Estado moderno que surge na Europa após a Idade Média, com a ascensão dos poderes absolutistas e, em seguida, burgueses, o que levou à estruturação de um campo governamental. O Estado francês talvez seja o exemplo maior disso. Novamente, Estado surge como um sinônimo, no caso, sinônimo de governo.

Essas definições frágeis, fracas como verbetes de dicionário, não podem se manter numa análise mais profunda que qualquer um de nós faça em algum dia. Pode-se imaginar, então, que um sociólogo como Pierre Bourdieu (1930-2002), um dos maiores nomes do pensamento francês do século XX, não poderia aceitá-las também. Muito menos poderia deixar de contestar aqueles que já tentaram redefinir o Estado pela teoria ou pela experiência. Bourdieu, como cientista que era, ao longo de sua carreira, tentou definir as representações e as funções do poder na sociedade, não somente na ocidental, sendo natural que chegasse sempre ao problema do Estado. O que é ele afinal de contas? Sabemos bem o que ele faz em nossas vidas, mas como apareceu? Ele existe concretamente? São essas questões que o autor de Sobre o Estado (2012), volume recém-lançado pela Companhia das Letras, tenta nos responder.

Trata-se, acima de tudo, de uma tentativa. Dar respostas é sempre um drama para aquele que faz ciência. Como toda investigação científica, Bourdieu também parte de alguns pressupostos, alguma experiência e pelo menos uma hipótese. Isso tudo em aula, afinal Sobre o Estado é a compilação de transcrições e anotações de seus cursos no Collège de France, realizados entre 1989 e 1992. O pressuposto é claro: segundo ele, o Estado não é bem definido por seu estado de ser, apenas de fazer. Também reafirma a todo tempo a ficcionalidade do Estado, como construção social que, a rigor, não é “natural” e “imutável” como parece ser. Cita uma série de constatações feitas por pesquisas sociológicas anteriores, inclusive por ele feitas, e apresenta a hipótese de que o Estado é um artifício do poder criado ao longo da história e que se mantém dominante por dominação simbólica. Em resumo, o Estado age, para além da economia, no nosso imaginário para se manter vivo.

A crítica, como pode se notar logo, é semelhante àquela feita desde o século XIX por socialistas, sejam eles marxistas ou anarquistas. O próprio sociólogo francês ressalta isso, mas se mantém distante em especial das conclusões feitas pela tradição sociológica e filosófica marxista. A crítica existente desde as obras de Marx à exploração econômica do proletariado por parte do Estado burguês é avaliada por Bourdieu, porém abandonada como hipótese de definição, pois se baseia exclusivamente no que o Estado faz. Nós, acostumados com a lógica do “diga-me com quem andas que direi quem és”, a princípio podemos ter dificuldade em entender a real intenção do sociólogo, mas ela se explica na verdade pelo simples fato de ele ser um cientista. Tal característica é a todo tempo reafirmada pelo autor de Sobre o Estado como razão de sua pesquisa, que ele qualifica como “impossível”.

E por que seria impossível se a princípio conseguimos entender a proposta simples de determinar o que é o Estado? Segundo Bourdieu, sintetizar o que é o Estado pela ciência e pela linguagem é difícil porque a ciência e a linguagem são fenômenos sociais, fatores que são como são justamente porque o Estado as moldou como tais. Trata-se de um ciclo vicioso. Chegamos perto da situação a que outros pensadores franceses da geração de Bourdieu chegaram, como Michel Foucault e Roland Barthes em A ordem do discurso (1971) e Aula (1977), respectivamente. Observe-se que Bourdieu não estava necessariamente “atrasado” em sua constatação, afinal o sociólogo é conhecido por tratar da linguagem desde pelo menos a publicação de A economia das trocas linguísticas, em 1982.

Após o auge do estruturalismo nas ciências humanas em terras francesas, aparentemente todos os estudiosos se depararam com o fato de que a língua, tão esmiuçada em busca de estruturas, escondia em si uma estrutura social gigantesca, na verdade, uma síntese da sociedade em si. Por uma série de fatores semióticos, como o tempo, o sociólogo percebe que o Estado consegue determinar até mesmo nossa apreensão da passagem dos minutos, dos dias, por instrumentos como o relógio e o calendário, elementos básicos da nossa compreensão do mundo. A língua, nosso principal meio de explicar coisas, inclusive cientificamente, é também regulada pelo Estado. Como poderíamos então afirmar sem qualquer receio o que é essa ficção que domina nossas vidas se, inclusive, nos definimos como indivíduos por ela? O Estado é verossimilhante demais para explicarmos com facilidade que ele na verdade não existe.

Fora do âmbito científico, notamos que inclusive militantes anarquistas, ferrenhos críticos da democracia representativa por meio de propostas antiestatais (e extraestatais) como Mikhail Bakunin, buscam desde o século XIX apresentar o Estado em termos claros como um símbolo de uma dominação que pode acabar. Mesmo por uma filosofia política vê-se que há alguma coisa ali que nos inquieta e, ao mesmo tempo, nos mantém atados inclusive pela razão.

Pierre Bourdieu, por meio não só da experiência sociológica, procura realizar seu trabalho. Em Sobre o Estado, há inúmeras referências à antropologia, à história, ao direito, à literatura para apresentar visões sobre a questão, criticá-las, retirar algo de cada uma que possa nos auxiliar na compreensão do objeto de estudo. Análises precisas da gênese do Estado, de formas de governo específicas de cada sociedade são feitas com o objetivo de esclarecer a seus alunos (e futuros leitores) todas as dúvidas que surgiram para ele e todos que estão ali.

Ainda assim, trata-se de uma obra que demonstra que estamos sempre para além da ciência: a filosofia e a literatura são, para Bourdieu, expressões que parecem sempre definir tudo melhor que a análise do cientista. Talvez daí venha a validade de Sobre o Estado, trabalho científico que a todo momento questiona a ciência como única forma de pensamento verdadeiro, sendo o Estado um dos fatos quase inexplicáveis da vida em sociedade.